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fevereiro 24, 2018

Sobre o ensino da Arte

Elkins, muito provavelmente, sofria do chamado "síndrome do impostor" quando escreveu o livro "Why Art Cannot Be Taught" (2001), diagnóstico meu. Ou seja, sentia-se incapaz de interiorizar os seus feitos enquanto professor, incapaz de dar conta dos resultados do seu trabalho com os seus alunos, daí que a frustração tenha resultado neste livro. E digo isto no passado, porque passando pelo seu site, percebemos que, em parte, mudou depois de opinião. Talvez o facto de o livro não ter sido muito bem recebido na altura, por exemplo a sua própria Universidade (a School of the Art Institute of Chicago) recusou-se a publicar o manuscrito, o tenha levado a refletir sobre o que queria realmente dizer quando o escreveu, já que o livro espremido, não diz nada.


Não posso dizer que o livro não vale sequer o seu custo, vale, os dois primeiros capítulos em que Elkins discorre sobre a história das escolas de artes ao longo dos últimos séculos, e discute as questões em redor dos currículos nucleares, são muito interessantes, ocupando quase toda a primeira metade do livro. O problema surge, na segunda parte, quando Elkins olha para o presente daquilo em que se tornou a escola superior de artes, tecendo considerações sobre a sua atual inconsequência, manifestando-se totalmente incapaz de propor qualquer alteração. Estando tudo mal, segundo Elkins, não há nada que possamos fazer, resta-nos continuar a fazer de conta que estamos a ensinar!
“The idea of teaching art is irreparably irrational. We do not teach because we do not know when or how we teach.” (p.189)
Ora existem aqui vários problemas de base: a confusão, propositada ou não, entre processos técnicos e criatividade; a ausência de conhecimento sobre os processos cognitivos; e a ausência de conhecimento sobre os processos sociais criativos.

O primeiro ponto é talvez o mais relevante já que está na base desde logo do próprio título. Se olharmos a arte do ponto de vista do resultado, enquanto produtora de artefactos expressivos e originais, então claramente não é possível ensinar arte a ninguém, desde logo porque estes resultados, enquanto tais, não dependem apenas dos criadores, mas também da interpretação dos recetores dos mesmos. Por exemplo, o mercado da arte que todos conhecemos, e que vende obras por valores incalculáveis não se regula pela avaliação dos objetos em si, mas antes pela avaliação de um conjunto de críticos/colecionadores que atribuem valor ou não a uma obra. Quando muito, poderíamos ensinar os artistas a comunicar ideias de modo a garantir o interesse desses colecionadores, seguindo as mesmas lógicas que utilizamos no ensino da criação de entretenimento ou de publicidade. Mas se queremos ensiná-los a ser diferentes, a quebrar convenções, a subverter o status quo, aí entramos num território bastante mais complexo, para o qual podemos, de modo metafórico, abrir janelas, mas não podemos apresentar o caminho, já que ele é individual e construído no tempo conjuntamente com a sociedade.

Mas o ensino de arte não tem de ser isto, apesar de ter sido neste sentido que convergiu ao longo do último século, nomeadamente depois da revolução modernista, como fica evidenciado na apresentação das várias escolas de ensino de artes. Compreendendo quem ainda defende esta visão da, e consequente ensino da arte, tenho dúvidas em aceitá-la, exatamente por aquilo que fica demonstrado neste livro de Elkins, já que conduz o ensino a um beco sem saída, como ilustra Clowes abaixo:

"If you must go to art school" (1991), in Eightball 7, de Daniel Clowe. (Elkins, 2001:87)

Neste sentido, a criação artística é um processo, como qualquer outro processo aplicado, que carece de conhecimento especializado, e é esse conhecimento, as técnicas, que o ensino pode ensinar. Com isto não se defende aqui um ensino profissionalizante a um nível superior, mas defende-se que apenas com muito conhecimento e domínio técnico se pode chegar à superação e consequente subversão. Como diz Saramago:
“A escola deveria ensinar a ouvir. Cabe-lhe ensinar o aluno a escrever corretamente e também explicar por que as regras são assim, e não de outra maneira. Mas a escola não será o lugar onde se subverte e revoluciona a estrutura da língua. Essa tarefa pertence aos escritores, se estes consideram que têm motivos para o fazer. (…) Os estilos saem do ovo da sua própria necessidade. Ensine-se a pensar claro e a escrita será clara. (…) A escola não é o lugar em que se subverte a estrutura da língua porque ela não tem preparação própria suficiente para se arriscar nessa aventura. As regras são como os sinais de trânsito numa estrada. Estão ali para orientar e dar segurança ao condutor. Claro que é possível viajar por uma rodovia onde não haja sinais de trânsito, mas para isso é indispensável ser um bom condutor. Aí está a diferença.” 
José Saramago (2003)
As regras são a técnica que se pode ensinar, mas também o ouvir e o pensar, o crescer enquanto indivíduo consciente do mundo que o rodeia. E é no mínimo caricato, para não dizer algo pior, que Elkins tente comparações entre a Arte e a Física, e venha falar de testes que dão conta do que efetivamente o aluno aprendeu, e não olhe para as outras artes mesmo ao lado das Visuais, tais como a Música ou a Dança. Sendo a avaliação nesses ramos tão subjetiva como é em qualquer outra arte, não deixa de conter um enorme espaço para a objetividade, que é assegurada pelo corpo de praticantes da mesma. A distinção entre um performer medíocre e um bom é discernível com critérios objetivos, claro que já não poderemos dizer o mesmo, entre um muito bom e um excelente. Mas aqui eu questiono, e onde no mundo em que vivemos, é que isso é possível de ser distinguido? Mesmo no campo da ciência, quando submeto uma proposta de investigação para financiamento, a avaliação que é realizada sobre a mesma, desde que ela atinja os tais parâmetros mínimos objetivos de qualidade, é profundamente subjectiva.

Mas isto é confundir a realidade com o ensino. A educação não foi inventada para criar seres profissionais, prontos a debitar aquilo que as sociedades necessitam. A educação existe para acelerar o processo de adaptação às realidades, e acima de tudo para garantir as mesmas hipóteses, em termos cognitivos a todos, mas é apenas isso. Depois cabe a cada indivíduo encontrar-se, definir-se, e destacar-se. Por isso não cabe a um curso superior criar um artista, tanto como não cabe criar um médico ou um advogado, que só podem afirmar sê-los, depois de cumprirem uma série de requisitos no mundo real, exterior à rede de segurança proporcionada pela escola.

Daí que afirmar, “It does not make sense to try to understand how art is taught.” (p.190) é não só ridículo, mas acima de tudo uma acomodação àquilo que se tem, mesmo não concordando com o que se tem. Desde logo não podia ser dado exemplo pior a um aluno, de artes ou qualquer outra área, do que dizer-lhe que “não vale a pena”. Por outro lado, é a demonstração de que Elkins nunca parou um minuto para estudar matérias fora do seu próprio domínio. Porque não faltam trabalhos no domínio da Educação, mas mesmo que não quisesse entrar por aí, se tivesse pelo menos tentado compreender os seres-humanos com quem tem de lidar todos os dias, ou seja a psicologia dos seus alunos, teria estudado um pouco sobre ciência cognitiva, procurando perceber de que é feita a motivação humana, assim como as diferenças entre talento, inspiração e trabalho, e teria conseguido ver um mundo completamente diferente. No fundo, em vez de ter passado todo o tempo a questionar a arte pela arte, devia ter parado para ouvir, ler e questionar a realidade que o rodeia.

setembro 10, 2015

Criatividade em remix no “Hell’s Club”

Antonio Maria Da Silva, provável lusodescente, residente em Paris, criou um trabalho brilhante de montagem e composição vídeo a partir de dezenas de sequências de diferentes filmes chave de Hollywood. O filme conta com quase 10 minutos, nos quais somos convidados a viajar até ao “Hell’s Club”, um clube ficcional criado por Antonio Maria Da Silva, por meio de uma edição e correcção de cor tão perfeitas que tudo parece ter sido verdadeiramente filmado para este filme.



A base do trabalho consiste num apanhado de sequências cinematográficas passadas em discotecas, retiradas de filmes como: “Star Wars", "Saturday Night Fever", "Hellraiser", "Scarface," "Carlito's Way", “The Terminator", "Matrix", “Trainspotting” "Pulp Fiction", "Robocop”, “Collateral Damage” entre outros. Com as sequências em mão o autor terá procurado uma linha condutora de acção e conflito, que acaba por resultar plenamente, ao contrário de muitos outros trabalhos de remix que se ficam pelas simples piadas ou fragmentos narrativos.

Para tornar credível todo o cenário de "Hell’s Club” foi necessário proceder a um enorme trabalho de correcção de cor, já que as luzes da discoteca de "The Matrix" são completamente distintas das de "Saturday Night Fever", e mesmo quando aproximadas, são-no apenas na nossas recordações, já que o clube de Tony Montana sendo filmado nos anos 1970 não tem qualquer afinidade com um clube filmado nos anos 2000, para parecer um futuro distante em "Star Wars Episode II: Attack of the Clones". Sobre tudo isto existe toda uma quantidade de pequenas composições internas nas imagens, com sequências de filmes a surgirem em reflexões de outras sequências, com personagens a surgirem em profundidade de campo, ou ainda no uso de sombras que simulam personagens que passam por outras que nos mantêm ali fixados, seduzidos, e crentes na existência do Hell's Club.



Se a edição de cor é o garante da unidade audiovisual, aquilo que verdadeiramente garante a cola narrativa de todo o filme é o trabalho de enorme minúcia realizado sobre o "gaze" (o olhar de cada personagem no enquadramento). Toda a história é construída com base nos olhares dos personagens de cada filme, com Antonio Maria Da Silva a trabalhar cirurgicamente o cruzamento constante de olhares entre os diferentes actores, indo mesmo além, quando coloca o mesmo actor mas em diferentes filmes, como que a olhar para si próprio, sem dúvida daqueles momentos que marcam qualquer trabalho na mente do espectadores.

"Hell's Club" (2015) de Antonio Maria da Silva

Analisando o canal YouTube de Antonio Maria Da Silva podemos verificar como tudo isto pode ser novo para nós, mas não é algo recente, nos seus trabalhos anteriores podemos notar que há vários anos que ele vem trabalhando a imaginação de conflitos cinematográficos por meio de remontagens e remisturas de filmes tais como Bruce Lee vs. Bruce Lee (2013), ou Terminator vs. Robocop (2010). Aliás, o seu canal Youtube revela-se interessantíssimo para compreendermos o processo evolutivo das suas competências de edição e composição audiovisual. São várias dezenas de vídeos, essencialmente mashups, que podemos aí encontrar, criados ao longo dos últimos sete anos, que funcionam como uma evidência clara de o talento resulta da prática, da persistência, da vontade de continuar a fazer mais, e sempre melhor.

agosto 31, 2015

“O Velho e o Mar” (1952)

Parábola do humano, ou significado do propósito e persistência. “O Velho e o Mar” procura ir à essência daquilo que nos define enquanto espécie, da verticalidade do que faz de nós uma das espécies mais arrojadas e completas deste planeta. Partindo da predação, Hemingway desenha um esboço da elevação das nossas faculdades, do como fomos para além da mera sobrevivência. Um livro curto para tão grande metáfora, ainda assim nada fica de fora, nada mais seria preciso dizer. Quando se toca a última página, o fechamento não está ali, porque o fechamento tem de ser construído pelo leitor, ainda que se requeira dele experiência de vida para o poder fazer.

“Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amáva-lo quando estava vivo, e ama-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?”
Ler “O Velho e o Mar” é uma experiência particular, de profunda imersão num universo de isolação, perfeitamente tornado visual pelo virtuosismo da simplicidade da prosa de Hemingway. É-nos impossível escapar à solidão do alto mar, da acalmia e som das ondas, das aves que voam e os peixes que saltitam, é-nos impossível escapar a viver duas horas naquele barco com Santiago, sentir o cheiro a maresia, e ouvir a espuma das ondas bater no seu casco. Leia-se o pequeno excerto,
“Acordou com o sacão do seu punho direito contra a cara e a linha a arder-lhe a mão. Não sentia a mão esquerda mas travou quanto pôde com a direita, e a linha corria. Por fim, a mão esquerda encontrou a linha, e ele fez força com o corpo para trás, e agora queimava-lhe as costas e a mão esquerda, e esta suportava o esforço todo, que violentamente a cortava. Olhou para trás para os tambores de linha, que se desenrolavam com ligeireza. Nesse momento o peixe saltou, espadanando o oceano, e caiu pesadamente. Saltou mais uma e outra vez, e o barco deslizava rápido, apesar de a linha continuar a correr, e o velho ia elevando a tensão até à rotura, e elevando novamente e uma vez mais. Havia sido atirado contra a proa, tinha a cara no filete de ‘dorado’ e não podia mexer-se.” Da belíssima tradução de Jorge de Sena
Esta capacidade para tornar visual tem muito que ver com o detalhe, e esse só pode ser sorvido pela experiência, algo que Hemingway teve e de onde retirou muito daquilo que aqui podemos ler, enquanto dirigiu o seu barco, Pilar, pelas águas de Cuba. Assim, não fosse Hemingway tão visual e possivelmente não existiriam tantas adaptações desta história ao cinema, tanto na forma de longas como curtas de animação.

Dessas, a obra de Alexandr Petrov é sem dúvida alguma a de mais alto valor, atrevendo-me eu aqui a colocá-la ao nível da obra de Hemingway. Pode parecer heresia para alguns, mas graças à rede posso dar-vos a degustar aquilo de que vos falo no vídeo abaixo. São 19 minutos, escolham um tempo calmo e dediquem-lhe a vossa atenção, no final me dirão se me engano.

"The Old Man and the Sea" (1999) de Aleksandr Petrov

Se a obra de Hemingway recebeu o Pulitzer em 1953, e ele próprio foi galardoado com o Nobel em 1954, Petrov arrecadou quase todos os grandes prémios de cinema de animação entre 1999 e 2001, incluindo o nosso Cinanima, onde o vi pela primeira vez em 1999, e o Oscar de Melhor Curta de Animação em 2000. Petrov investiu dois anos e meio, juntamente com o seu filho, para criar os mais de 29 mil quadros, em óleo sobre vidro, que compõe os 19 minutos deste filme, fazendo do processo de criação deste filme, um hino ao significado da parábola da obra de Hemingway, com que abri este pequeno comentário ao livro.

dezembro 26, 2014

Análise: “O Meu Irmão” (2014)

Portentoso debute. “O Meu Irmão” é dono de uma escrita sublime e dotado de um enredo matematicamente alinhavado, em nome do contar de uma história capaz de nos arrancar um grito de alma. Peguei nas primeiras páginas na noite, já tarde e sem grande ideia de o começar a ler, contudo a beleza do que comecei a ler num fio encadeado de palavras fluídas, logo me manteve ali preso.


Afonso Reis Cabral é jovem e por isso com muito ainda para dar às letras nacionais, apesar de primeira novela a maturidade apresentada dá conta de tanto e tanto trabalho realizado para chegar aqui, temos por detrás destas páginas alguém que leu centenas se não milhares de obras, temos alguém que escreveu centenas se não milhares de páginas, no que podemos ler ao longo destas 360 páginas fica demonstrado um domínio exímio da nossa língua, assim como uma noção muito concreta do que comporta uma novela.

Não foram poucos os que criticaram o escritor, não a obra porque nem sequer a tinham lido, só foi publicada depois de escolhida pelo júri do Prémio Leya 2014. Ganhar um prémio literário num valor de 100 mil euros é algo que levanta o sobrolho a qualquer um, ganhar com apenas 24 anos faz disparar o espanto, mas dizer que é trineto de Eça de Queirós faz surgir a desconfiança.

Contudo a capacidade de criar um texto destes não se define pela idade e menos ainda pela herança genética. Como nos dizem os vários estudos sobre o talento humano (Colvin, 2008; Coyle, 2009) esta capacidade só surge com muito, imenso, trabalho. Afonso Reis Cabral pode ter apenas 24 anos, mas se começou a escrever, como diz, aos 9 anos, tem 15 anos de labor em cima da arte. Do que nos é dado a ler é fácil ver as influências dos grandes clássicos da literatura, mas também se sente muito do seu mundo vivido, o que nos diz que o autor não só foi buscar muito aos outros que o precederam, como devia, mas também que é extremamente atento à realidade que o circunda.

Para Alain de Botton "a literatura é o maior simulador de realidade", capaz de nos fazer passar por experiências para as quais precisaríamos de várias vidas. O escritor Afonso Reis Cabral, e a sua idade, são a prova viva desse capacidade da literatura. Claro que não basta ler muito para se tornar num grande escritor, é preciso agir e trabalhar sobre aquilo que se lê e se consome, correndo o risco de nos deixarmos consumir. Ou seja, escrever, escrever todos os dias e sempre. Mas para poder evoluir falta ainda a motivação e a orientação, porque por muito solitária que seja a vida de quem escreve, o crescimento só é possível com o feedback de quem nos lê. Nesse sentido, ter tido bons professores no secundário e seguir uma licenciatura e mestrado na área das letras ajudou bastante.

Para quem entretanto o leu, dizer, ou criticar sob o preconceito dos 24 anos, que não se pode ainda escrever com profundidade (não vou nomear), é infantil porque se busca a infantilização do ser humano. Podemos sem dúvida questionar se esta será a sua maior obra, pois espero que não, é apenas o início de um caminho, que deve ser valorizado enquanto tal, não se analisa uma primeira obra como se analisa a obra de uma vida.

Falei acima do sentimento matemático que percorre o texto, que é no fundo um sentir profundamente académico que vibra ao longo de todo o livro e que de forma inteligente é atribuído pelo autor ao personagem principal, na sua profissão de investigador e professor  universitário. O enredo entre cada uma das pequenas histórias cozidas num todo, segue um processo de harmonização em busca de uma perfeição, com cada lugar, personagem e evento a trabalharem para um sentido muito concreto e altamente coerente. Por outro lado, existe uma fuga, que me parece consciente, a essa racionalização ou perfeccionismo que acaba por emergir numa espécie de mancha naturalista. Ou seja, existem diálogos com expressões duras, a roçar o mau gosto, incomodativas, chegando a tornar-se perturbadoras se pensarmos que este autor pode sequer ter pensado o que está ali escrito, mas que não estão ali por acaso, antes objectivam o tal naturalismo, um dar a sentir o que se diz e pensa em determinados momentos das nossas vidas, mesmo que isso não represente a forma polida de o escrever. Aliás este naturalismo é também em certa medida fruto do traço estilístico escolhido para a narração que se faz a duas vozes, ainda que da mesma pessoa, como se o narrador fosse dotado de um homúnculo que vai corrigindo e aprofundando a ‘verdade’ do que se vai narrando. Ou seja, nota-se aqui uma certa vontade de imprimir honestidade ao que é dito, e para que essa funcione, limpar e polir os diálogos poderia facilmente desacreditar essa frontalidade.

Ao longo do livro fui sentindo uma certa influência de cinema francês (ex. Eric Rohmer ou Alain Resnais), na forma como as relações humanas são descritas e moldadas, a suavidade e delicadeza da sua exposição. Parece nunca haver pressa para dar conta de um personagem, das suas relações ou daquilo que o afecta, como se a vida corresse a seu tempo ignorando as nossas angústias e a velocidade a que nos fomos acostumando que tudo gire. Para isto contribui imenso o lugar no interior do país, o constante apego ao passado, e claro o ritmo alternativo da vida de alguém que sofre de síndrome de Down. Ao longo de todo o livro o síndrome é tratado como algo perfeitamente normal, encaixável nos ritmos dos dias de hoje, muito pelo suporte das associações que tomam conta da maior parte destes indivíduos durante o dia, aliviando imenso o peso sobre as famílias. Não que se mascare o problema, ele é bem evidenciado, por vezes de forma diria mesmo perfurante, assim como nunca se usa o ‘problema’ para desenhar o sentimentalismo ou a melancolia fácil.

Mais para o final o modo calmo e suave, ainda que sempre fluidamente ritmado, sofre uma ligeira alteração assumindo um tom mais policial que inicialmente me afastou, pois soou-me a necessidade de cumprir as regras do storytelling, mas pouco depois altera-se de novo quando tudo se resume e encaixa no fechamento do todo, fazendo antes com que este episódio assuma o brilho da genialidade do autor, comportando em si mesmo tudo aquilo que na verdade este pretendia expressar, tudo aquilo que provavelmente o terá levado a escrever este livro.

Deixo apenas três frases que dão conta da escrita de Afonso Reis Cabral, do modo como este consegue simplificar o discurso, metaforizando sentires com imagens do quotidiano, tornando o mundo descrito extremamente acessível, mas demonstrando toda a sua capacidade para elaborar textualmente universos. Mais transcreveria se tivesse o livro em digital:
“Torna-se complicado quando ao cuspir também se quer projectar o ódio acumulado nas paredes do estômago.”

“...o tempo deixa-se escorregar como uma faca bem afiada: quando damos por isso, o corte está feito”

“Estalou os dedos e gaguejou, tropeçou nos gestos e nas palavras enquanto tentava ordenar o relato”

Nota quantitativa no GoodReads.

maio 17, 2014

O longo jogo do génio

Trago uma nova série de filmes web criada por Adam Westbrook, relativamente conhecido pelo seu trabalho à volta do storytelling digital. Neste seu novo projecto, Delve Video Essays, Westbrook faz uma abordagem assente no formato de ensaio audiovisual, o que é por si só motivo de análise e exploração.



Para avançar com este projecto Westbrook escreveu um manifesto que me parece relevante ser lido, vindo de alguém que tem refletido bastante sobre o storytelling e a publicação online. Retiro do mesmo quatro pontos que levaram Westbrook a avançar com Delve.
1 - “serendipity is magical and it's something the Internet can't replicate so easily. All the knowledge is there - but it's built to be easily found if you know what you're looking for.”

2 - “The knowledge is all there, accumulated over 13,000 years of civilisation but it feels locked away somehow, as if it's out of reach. It's trapped behind glass etched with the dreaded word "boring".”

3 - “’people get the mind and quality of brain that they deserve through their actions in life’ (Robert Greene)… If you choose to use your free time to play Candy Crush Saga, watch Friends re-runs and read Buzzfeed, you will get the mind that comes from that. But if you choose to push your brain, to make it work hard, to keep learning new things, to read difficult books, to consider challenging ideas then, like the muscles on your body, it grows stronger and more connective… But it's much more rewarding to read Buzzfeed.”

4 - “I'd like you to meet delve - it's a web video channel I'm building for people who want to take their learning seriously. It's not a course, or a qualification, and it's not for people who want to study something particular. It's for people who love learning for the sake of learning, who want to feed their mind the most beautiful and unexpected feasts.”
Apresentado o Delve vejamos o que nos trazem os dois primeiros trabalhos, que formam apenas um em duas partes, “The Long Game” (2014). O tema de fundo não passa ao lado de todos aqueles que se interessam pelos processos criativos, pela mestria, um tema que se tornou mais relevante nos últimos anos com a discussão em redor das comunidades e indústrias criativas.

"The Long Game Part 1" (2014) Adam Westbrook

Assim o substrato diz respeito ao processo demorado da criação do génio. Westbrook explora o exemplo de Leonardo Da Vinci, considerado um dos mais relevantes criativos da nossa história, desmontando o seu surgimento, génio e talento. Todos sabemos que o processo de transformação de um criativo é um processo lento, mas saber que Leonardo levou 16 anos a conseguir atingir o seu auge, ajuda-nos a questionar muitas das ideias feitas que temos sobre os iluminados, os chamados “outliers”. Essencialmente este dois curtos ensaios audiovisuais servem para nos alertar para um discurso de facilitismo surgido no século XX e que procurou vender a juventude, com todas as suas propriedades, como a essência da vida e do talento, quando apenas o tempo e a experiência podem conduzir à qualidade, ao génio.

"The Long Game Part 2" (2014) Adam Westbrook


Links de interesse
Talento é Sobrestimado, in Virtual Illusion
Processo criativo, dos 2 aos 25 anos, in Virtual Illusion
Outliers de Malcom Gladwell, in Virtual Illusion