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setembro 19, 2021

A Torre de Montaigne

Enquanto leio "Civilizations" (2019) de Laurent Binet dou por mim atirado para um castelo que possui uma torre, na qual se encontra uma biblioteca com traves munidas de inscrições em latim e grego. Acreditando ser a biblioteca de Montaigne (1533 — 1592) fui procurar informação na rede e acabei recolhendo um conjunto de imagens que aqui deixo. Pode ser que um dia, quando volte a passar por Bordéus, ainda consiga fazer um desvio e vá visitar tão iluminada torre.

setembro 09, 2020

A publicação de "Engagement Design" (2020)

O meu mais recente livro, "Engagement Design: Designing for Interaction Motivations", foi publicado a meio de março 2020, exatamente aquando do início da quarentena provocada pela pandemia COVID-19. Tinha intenção de dar conta da publicação do mesmo no blog e nas redes sociais, mas com a quarentena e todos os impactos da mesma acabou por ser algo sempre protelado. Aproveitando agora o início do novo ano letivo fiz um pequeno texto sobre a publicação do livro, focado na génese e motivação por detrás da sua escrita, assim como na inovação da proposta que apresenta.

Este livro começou a ser germinado no ano 2014/2015, como obra de introdução ao design de interação, com um forte enquadramento no domínio da Interação Humano-Computador (IHC), na altura com o intuito de publicar o mesmo na editora portuguesa FCA, onde tinha publicado o "Videojogos em Portugal: História, tecnologia e arte" (2013). Contudo, pouco depois de anunciar que ia escrever o livro dei por mim dentro de uma espiral de acumulação de material sobre a área, não conseguindo parar de colecionar obras, textos, capítulos, modelos, projetos... Quanto mais informação acumulava mais me questionava sobre a relevância de escrever um livro introdutório que iria ser igual a tantos outros, mesmo que sendo em português, língua em que existiam parcos recursos.

Foi apenas quando resolvi escrever o primeiro capítulo que me dei conta da minha insatisfação com a área, em particular na aplicação das metodologias do design de interação ao design de jogos e em geral ao design de media interativos. Tinha ocorrido uma mudança grande no discurso da IHC, com o foco a mudar da Usabilidade para a Experiência, mas quanto mais lia sobre a experiência e o tão em voga UX, mais me desolava. Na verdade, parecia-me que pouco tinha efetivamente mudado. A experiência era algo tão vago e ambíguo que parecia servir apenas de moldura, mantendo-se em uso muitas das mesmas metodologias que eram utilizadas nos estudos da usabilidade.

Foi então que me dei conta da necessidade de concretizar o conceito de Experiência, e ao fazê-lo acabei chegando ao conceito de Engajamento. O que importava a quem discutia a Experiência era que essa fosse significativa para os utilizadores, mas o significado em si não podia ser medido, sequer antecipado, já que cada indivíduo tem um mundo de experiências prévias que contaminam sempre qualquer nova experiência. Por isso era preciso trabalhar algo mais formal que fosse generalizável, e o engajamento permitia isso mesmo. Ao trabalhar o design para o engajamento podíamos aperfeiçoar a experiência sem depender dos elementos subjetivos, porque estávamos a adequar a forma estética, funcional e de criação de significado a um conjunto de generalizações humanas. 

Para chegar a generalizações relevantes no modelo tive de trabalhar perfis e esses acabariam por ser desenhados em função da personalidade, de modo que os traços de personalidade humana acabariam por traçar a base daquilo que viria a definir no livro como "streams of engagement" (fluxos de engajamento). Ou seja, usamos a personalidade para generalizar o design da interação, a partir do que podemos, nas fases subsequentes, aprofundar em função da resposta dos utilizadores particulares de cada universo cultural, e em função do tema concreto do artefacto a desenvolver. Para ter uma noção rápida do que o livro pretende e como pode ser utilizado, podem ler o texto “Applying the Engagement Design Model” que fiz para acompanhar a saída do livro.

Com o capítulo escrito, que acabaria por ser o segundo do livro, enviei a proposta para a Springer, em inglês, e o retorno acabou sendo imensamente positivo, o que me motivou a avançar com os restantes capítulos e a criação do modelo final proposto no livro. Ou seja, o livro que tinha começado como estudo introdutório a uma disciplina, acabaria por tornar-se num livro de investigação sobre um tema e apresentação de um novo modelo de design não apenas teórico mas aplicável. Quando terminei o livro, enviei o mesmo ao Jeffrey Bardzell que fez o favor de escrever o prefácio que acabaria por surgir depois no livro.

Claro que tudo isto é passado, o meu interesse é agora procurar aplicar e melhorar o modelo proposto nos projetos a desenvolver no DigiMedia, e que possa servir a comunidade científica na busca por uma melhor compreensão do próprio design de interação e de experiência. Com o feedback que for recebendo, continuar a trabalhar para otimizar o modelo, nomeadamente nos diferentes domínios do design de interação em que possa vir a ser aplicado.

setembro 22, 2019

A melhor cultura do século XXI

O jornal The Guardian fez ao longo das últimas semanas um balanço destas primeiras duas décadas do século XXI em termos da cultura criada no domínio específico das artes e entretenimento — em 11 áreas: Livros, Filmes, Videojogos, Teatro, Programas/Séries TV, Arte, Dança, Álbuns, Obras de Música Clássica, Comediantes e Arquitetura. Para apresentar esse balanço, recorreu ao comum meio de listas ordenadas que são sempre responsáveis por gerar celeuma, mas continuam a ser o melhor método para efeitos de catalogação. O melhor, não pela sua natureza avaliativa, algo que em cultura e artes deixa sempre muito a desejar, mas pelo modo como apresenta à sociedade um apanhado daquilo que um conjunto de especialistas considera ser digno de continuar experienciar, e que é imensamente relevante porque é destas listas que se geram os cânones, sem os quais nos perderíamos na imensidão de produção que o globo que habitamos produz num único dia. Estas vão servindo ainda para manipular o viés internacional cultural que está hoje completamente inquinado pelos EUA e UK, não apenas por causa do inglês, mas também porque a sua cultura mais competitiva tende a privilegiar a produção continuada destas listas. Diga-se que não é um trabalho fácil, e nos tempos que correm e num jornal aberto e gratuito, absolutamente impressionante.




Começar pelo todo das áreas escolhidas, percebe-se um enfoque na arte e na narrativa, notando-se a inclusão de duas áreas que apenas recentemente começaram a ganhar projeção: os Programas de TV e os Comediantes. Os primeiros claramente pela enorme força das séries de televisão que se têm vindo a transformar no grande meio de cultura de massas, lugar que já tinha pertencido à televisão, passou para o cinema, e agora parece estar a voltar à televisão. Interessante recapitular como os videojogos tinham sido anunciados como o meio do século XXI, mas até ao momento ainda não conseguiu nada que se aproxime das demografias das séries de televisão. Os comediantes sendo também uma novidade, surgem também pela força da televisão, seja por cabo ou stream ou simplesmente na rede, eles surgem enquanto programa de televisão. E ainda que possam encher teatros e auditórios, a sua força de atração e relevância social é emanado por esses programas, o que nos alerta para mais uma das muitas visões que os futuristas nos deram no passado, o fim da televisão.

Ainda no campo das áreas, e apesar de serem já bastantes, e nem saber se o Guardian não irá continuar a publicar mais listas, estranha-se a não presença de Banda Desenhada, ainda que alguns livros surjam no meio da lista de Livros, e podíamos dizer o mesmo da Pintura ou Escultura que desapareceram no meio das Artes, engolidas pela Arte Contemporânea, assim como a Animação e as Curtas-metragens. Ainda assim notamos também a falta de uma maior atenção às obras Multimédia — Webdocs, Filmes Interativos, Realidade Virtual e Aumentada, Instalações, Transmedia — que parece quase sempre existir por via dos videojogos, pela simples razão do dinheiro que movimentam.

Sobre as listas, comento apenas 3 — Filmes, Livros e Videojogos — por serem aquelas que sigo com  maior proximidade a produção de cânone. Não discordando de nenhuma das primeiras obras de cada lista, estranhei o facto de discordar bastante do resto dos Top 5, nomeadamente todos apresentam pelo menos 2 obras que não figurariam no meu Top 50 ou mesmo 100. No cinema — "12 Years a Slave" e "Under the Skin". No caso dos jogos — "Legend of Zelda: Breath of the Wild" e "Dark Souls". No caso dos livros, "Gilead" e "Never Let Me Go". Estranhei esta minha reação, algo visceral, porque como disse acima os cânones são importantes, e por isso sentir-me em desacordo tão profundo deverá querer dizer algo. Talvez a única explicação seja apenas e só que estou a ficar velho, e desfasado do tempo em que as modas são definidas. Não é a primeira vez que o sinto, já o senti antes ainda que seja algo mais recente. Como se nós fossemos envelhecendo e os mais novos fossem tomando o nosso lugar no domínio das correntes culturais e de entretenimento e os gostos gerais fossem naturalmente sendo atualizados.

Como criticar é sempre mais fácil do que fazer, e porque fazer listas limitadas apenas ao século XXI no caso da literatura é altamente complicado pelo que não pode ser equacionado pela data de produção, e no caso dos videojogos porque praticamente tudo cai dentro deste período. Deixo assim as minhas três lista de 5 obras em cada uma das áreas:

LIVROS
1. A Mancha Humana, Philip Roth, 2000, EUA
2. Liberdade, Jonathan Franzen, 2010, EUA
3. Os Dias do Abandono, Elena Ferrante, 2002, Itália
4. Uma Questão de Beleza, Zadie Smith, 2005, UK
5. A Estrada, Cormac McCarthy, 2007, EUA

FILMES
1. In the Mood for Love, Wong Kar-Wai, 2000, China
2. The Turin Horse, Béla Tarr, 2011, Hungria
3. A Separation, Asghar Farhadi, 2011, Irão
4. The Return, Andrey Zvyagintsev, 2003, Rússia
5. Three Monkeys, Nuri Bilge Ceylan, 2008, Turquia

VIDEOJOGOS
1. Ico, Fumito Ueda, 2001, Japão
2. The Last of Us, Bruce Straley & Neil Druckmann, 2013, EUA
3. Papers, Please, Lucas Pope, 2013, EUA
4. Her Story, Sam Barlow, 2015, EUA
5. Brothers: A Tale of Two Sons, Josef Fares, 2013, Suécia

Como disse, os grandes videojogos foram todos feitos já neste século, por isso é muito difícil fazer uma mera lista de 5. Adiciono aqui mais alguns que podiam ter entrado: The Witcher 3: Wild Hunt (2015), Max Payne (2001), Mass Effect Trilogy (2007-2012), The Stanley Parable (2013), Soma (2015), Inside (2016), The Sims (2000), Gris (2018), This War of Mine (2014), Gone Home (2013), The Walking Dead (2012), Thomas Was Alone (2012), Life is Strange (2015), Minecraft (2009), entre outros. Já agora, reparo que tenho 3 jogos de 2013 nos 5, mais 2 referenciados neste lista alargada, algo para analisar e refletir posteriormente.

maio 11, 2019

Nazismo: ouro e livros

Por mais que acreditemos saber já o suficiente sobre a Segunda Guerra Mundial, nunca saberemos tudo, é impossível, e acabamos sempre por nos surpreender sempre que lemos ou acedemos a novas histórias desses tempos, que alargam o espectro da maldade muito para além dos horizontes por nós já trilhados. A história que trago, nunca a tinha ouvido, porque ao pé de tantas outras, parece menor, não tem números impressionantes, aconteceu pela calada, e rapidamente foi silenciada por todos, mas não deixa de me impressionar pelo nível de dolo implícito.

Rua do Gueto Judeu de Roma (2018)

A 8 de setembro 1943 os nazis ocuparam Roma. Dos 8 mil judeus que aí viviam pouco mais de mil ficaram na cidade no Gueto de Roma, estabelecido em 1555. Neste encontrava-se a Biblioteca della Comunità Israelitica recheada com mais de 7 mil livros raros ou únicos, datados desde o século XVI.

No dia 26 de setembro 1943, o comandante da Gestapo em Roma anunciou que se não lhes fosse entregue 50 Kg de ouro, 200 famílias seriam deportadas. No dia 28 setembro ao meio-dia, o prazo dado, os 50 Kg apenas conseguidos graças ao contributo de toda a cidade de Roma, foram entregues.

No dia 14 de outubro 1943, menos de um mês depois, os 7 mil livros da Biblioteca della Comunità Israelitica foram levados, carregados em duas carruagens e conduzidos alegadamente para Alemanha. Estas duas carruagens nunca voltariam a ser encontradas, tal como todo o seu conteúdo, até hoje.

No dia 16 de outubro 1943, dois dias depois, os militares alemães cercaram e selaram o gueto. Cerca de 1030 judeus foram presos e deportados para Auschwitz. Apenas 16 sobreviveram.



Nota: Pesquisa realizada por via da Wikipédia, confirmada por meio de alguns artigos científicos, seguindo o rasto dos 50 kg de ouro, mencionados no livro “A História” (1974) de Elsa Morante.

abril 26, 2019

Sobre o Mito: “desde que se leia”

Um dos grandes mitos que surgiu nas últimas décadas com a elevação do discurso pós-moderno a discurso popular e consequente queda de reconhecimento dos especialistas, foi o da colocação ao mesmo nível de qualquer texto, independentemente da sua forma ou conteúdo. Diz-se e lê-se um pouco por todo o lado: “o que é preciso é ler, desde que se leia, não importa o quê”. Nada podia ser mais erróneo. Vamos usar um modelo simples de análise textual para perceber porque importa e faz diferença aquilo que se escolhe para ler.


A desconstrução, simples, de texto pode ser feita nas suas três unidades básicas que funcionam como camadas: sintaxe, semântica e pragmática. Assim, temos:
1º nível – Sintaxe: conjunto de regras e princípios que governam a estrutura das frases (Ex. explica como se conjugam verbos, ou plural e singular, etc.); 
2º nível – Semântica: é onde se atribui sentido às palavras e frases (Ex. “bola”, quer dizer pedaço de borracha esférica; mas “bola de futebol americano” quer dizer pedaço de borracha oval).
3º nível – Pragmática: aqui elevamos a complexidade, é onde se atribui sentido às palavras e frases em função da relação que temos com os significados ou com a pessoa que as emite. (Ex. “cruz”, um católico pensará em Cristo, mas um matemático tenderá a pensar em sinal de multiplicação; se um professor e um médico nos dizem “que não estamos a ir bem”, apesar da mesma sintaxe e mesma semântica, não querem dizer o mesmo).
Quando iniciamos os nossos passos como leitores, perto dos 6 anos, começamos pela sintaxe. Aprender as letras, depois palavras, depois regras que nos permitem juntar palavras e formar frases. Quanto mais lermos, mais exemplos vamos conhecer sobre como juntar letras e palavras para criar frases. Depois disso, começamos a perceber que existem muito mais palavras do que aquelas que usamos no dia-a-dia e que exigem durante o processo de leitura o uso do dicionário, o que nos vai fazendo ampliar o vocabulário, assim como acrescentando novos significados a frases compostas que antes desconhecíamos. Depois disso, começamos a perceber que apesar de poderem ser as mesmas palavras ou frases, elas variam em função de quem está a falar, do contexto, do local ou momento em que estão a ser ditas, e por isso vamos ampliando a nossa bagagem das múltiplas interpretações possíveis da linguagem.

Tendo em conta estes processos, podemos dizer que ler sempre o mesmo, ou um conjunto restrito de estilos textuais, é suficiente para o domínio sintático. Ou seja, para uma criança pequena, a dar os primeiros passos, não interessa muito o que vai lendo, desde que leia. O que se pretende é que memorize as letras, palavras, frases as suas posições, organizações e usos. Mas a determinada altura, temos de começar a guiar as leituras, temos de lhes oferecer textos que eles compreendam para que se mantenham a ler, mas que ao mesmo tempo vão exigindo mais e mais conhecimento de significados, de forma a garantir que eles vão ampliando o vocabulário, os diferentes usos frásicos, assim como as noções de composição diferentes dessas mesmas frases. Chegados à terceira fase, temos de começar a ler aquilo que numa primeira leitura não nos atrai, por ser diferente do que estamos habituados, ou seja, "sair da zona de conforto". Porque já não chega ampliar o vocabulário, precisamos de ler diferentes versões da realidade para podermos começar a comparar, a confrontar e a contrastar, e assim começar a compreender porque as mesmas palavras, e as mesmas frases, e as mesmas ideias podem conter outros significados até aí desconhecidos.

É por isso que ler qualquer coisa não é indiferente. Se lermos todos os dias, mas a leitura for colocada sempre ao mesmo nível de desafio, ou seja, não forem apresentados significados novos de palavras, frases, ou dos seus diferentes usos, é como se não estivéssemos a ler nada. O texto está a servir apenas de condutor, de envelope, ao qual nem sequer prestamos atenção. É como passar todos os dias na mesma estrada, não aprendemos mais sobre ela depois de passar por ela 100 vezes, não é por acaso que na maior parte dos dias não nos lembramos sequer de ter feito a estrada para o trabalho, nada de novo chamou a nossa atenção, foi mera repetição, por isso nada ficou dessa passagem.

Ou seja, ler Dan Brown ou José Rodrigues Santos pode até saber-me bem pela intriga e aventura, pode funcionar como umas horas bem passadas de entretenimento, mas por mais horas que os passe a ler, as minhas competências tanto de compreensão textual como de escrita não vão melhorar em nada (a não ser que seja um adolescente, ou seja alguém que leu muito pouco, e ainda não tenha atingido um nível médio). Lê-los, será como passar pela mesma estrada para o trabalho todos os dias, com a vantagem de poder ser divertido.

Do mesmo modo, se for um livro de não-ficção — sobre Astronomia, Vinhos ou Cinema — aprendo sobre o assunto em questão, mas não devo esperar que essa leitura altere ou contribua para melhorar as minhas competências de leitura e escrita. Por outro lado, se não incrementar o nível de detalhe, aprofundamento e erudição dos tópicos sobre esses temas, pela ausência de variação continuarei apenas a solidificar o que já sei, não passando disso. É por isso que as novelas de amor e traição se revelam tão pouco relevantes para além do mero divertimento, não só são limitadas no uso das funções textuais, como não vão além do baralhar e voltar a dar das tramas amorosas, descurando toda a restante complexidade humana.

Nunca se leu tanto no planeta como hoje, porque nunca as pessoas viram a sua realidade tão mediada por ferramentas que operam com imagens e texto, sendo o texto o principal meio de que as pessoas dispõem para se fazer ouvir. Desde os jornais e suas caixas de comentários ao Facebook, Twitter ou WhatsApp, nunca nos vários milhares de anos que levamos como espécie, houve tanta pessoa alfabetizada e obrigada a ler todos os dias para poder levar a sua vida por diante, no entanto essa prática diária não alterou propriamente as competências de leitura e escrita das pessoas. Basta perder um pouco a ler essas mesmas caixas de comentários e deter-se sobre o uso dado ao texto, a sua sintaxe, semântica e pragmática.


Podia terminar com o último parágrafo, mas não estaria a dar um contributo completo, por isso deixo duas recomendações: The Greatest Books e PNL2027.

março 04, 2019

Homossexualidade vs. Vaticano

Poder e interesses múltiplos. É o que existe por detrás da publicação simultânea, mundial e em papel de um livro com mais de 600 páginas, "No Armário do Vaticano" de Frédéric Martel. Todas as edições lançadas a 21 fevereiro 2019. Impressionante.



Já está no meu GoodReads, vamos ver quando o conseguirei encaixar nas leituras.

outubro 15, 2015

Book review

Just a quick post for the record of the first review of our book, "Creativity in the Digital Age" published by Springer this year. The review was written by Cecilia Manrique, University of Wisconsin, for the ACM Computing Reviews.



julho 07, 2015

"Video Games Around the World" (2015)

Recebi por estes dias a minha cópia do livro "Video Games Around the World" (MIT Press), enquanto autor de um capítulo, do livro editado pelo eminente Mark J.P. Wolf, um dos verdadeiros pioneiros dos estudos académicos dos videojogos. Este livro é inteiramente dedicado à história dos videojogos em vários países, contando com 40 ensaios, que abrangem todos os continentes, incluindo a Antártida. São 656 páginas que nos dão uma perspectiva global, sobre o modo como os videojogos surgiram e marcaram uma nova fase da cultura humana.

"Video Games Around the World" (2015) MIT Press

O capítulo que fiz para este livro não traz nada de novo a quem já leu "Videojogos em Portugal – História, Tecnologia e Arte" (2013), uma vez que o capítulo foi enviado para Mark J.P. Wolf em 2012, quando tinha acabado de fechar o livro. Nesse sentido, acaba sendo um ensaio de síntese de todo o livro, realizado com a gentil autorização da FCA Editora.

Contudo, isso não invalida que o resto do livro não seja imensamente interessante, contando com capítulos escritos por autores de renome como Frans Mayra (Finlândia), Lynn Alves (Brasil), Gonzalo Frasca (Uruguay), Mark J.P. Wolf (EUA), Joost Raessens (Holanda), Souvik Mukherjee (India), Michael Libe (Alemanha), Alexis Blanchet (França), Alexander Federov (Russia), e ainda um prefácio de Toru Iwatani.

maio 17, 2015

as tecnologias criativas

Esta semana saiu o resultado de mais um projecto do engageLab, o livro "Creativity in the Digital Age", dedicado a aprofundar as questões por detrás das tecnologias criativas. O livro foi publicado pela Springer e sucede a um número da revista Comunicação e Sociedade, nº22 (2012), também dedicado ao tema. O domínio das tecnologias criativas tem servido como um dos motores de ação no trabalho, que tenho desenvolvido conjuntamente com o Pedro Branco, no engageLab.


Este volume que agora editamos começou a ser preparado quando saiu o nº22 da revista Comunicação e Sociedade, ou seja teve um percurso de quase três anos até ver a luz. Na altura sentimos que ainda não tínhamos conseguido ir ao âmago da questão. É verdade que o domínio é em si extremamente abrangente, mas tínhamos algumas ideias bastante concretas do que queríamos aprofundar. Nesse sentido fomos trabalhando um position paper sobre o domínio, que tínhamos intenção de submeter a um journal, mas que acabou servindo de capítulo de abertura deste novo livro, sendo depois intitulado - "The Creative Revolution That Is Changing the World".

"Tecnologias Criativa", nº22 (2012)

As dificuldades de concretizar a temática deveram-se muito ao hype gerado em torno da ideia de criatividade nos últimos anos, de que fazemos menção no prefácio do livro, e que nos levou a recusar várias propostas, mesmo de pessoas que tínhamos previamente convidado a participar no projecto, por não se enquadrarem na abordagem que pretendíamos focar. Tudo isto arrastou a produção do livro, atrasando o seu fecho e submissão ao peer-review final dos editores da colecção Springer Series on Cultural Computing.

Dito isto, o resultado final satisfaz-nos bastante, julgamos que estão representados neste volume as áreas centrais do domínio das tecnologias criativas, e esperamos que este trabalho possa servir no lançamento de outras iniciativas, capazes de alavancar e sustentar o futuro da área.

janeiro 05, 2015

Livros que li em 2014

Em Maio dei aqui conta de uma alteração de hábitos que passava por jogar mais e ver menos cinema. A partir de Agosto voltei a introduzir alterações nos hábitos, tendo passado a ler mais, dedicando ainda menos tempo ao cinema, e roubando o tempo que entretanto tinha dedicado aos videojogos. Os livros lidos dividem-se em três grandes categorias - banda desenhada, não-ficção e literatura - para cada uma das categorias identifico as três melhores obras que li este ano. Alguns analisei aqui no blog, outros apenas no GoodReads.

Banda Desenhada 2014

1. Blankets (2003) de Craig Thompson [Análise]
2. Portugal (2012) de Cyril Pedrosa [Análise]
3. Arrival (2006) de Shaun Tan [Análise]

Não-ficção 2014

1. The Talent Code (2009) de Daniel Coyle [Análise]
2. To Save Everything, Click Here... (2013) de Evgeny Morozov [Análise]
3. The Design of Everyday Things Revised and Expanded (2013) de [Análise]


Literatura 2014

1. A Montanha Mágica (1924) de Thomas Mann [Análise]
2. Stoner (1965) [Análise]
3. The Martian (2014) de Andy Weir [Análise]

novembro 27, 2014

Seven Quotes

For some time I've stopped using Facebook, and been using Twitter to share some links that interest me, and that can serve others. But once again I realize the reason I was never a big fan of the tool, the limitation to 140 characters. In my daily readings I collect interesting quotes, but every time I try to share them via twitter, the lack of enough characters, makes it impossible.


Thus I've decided to take up some of these quotes and leave them in a post here on the blog.


Creativity
“Creativity is just connecting things. When you ask creative people how they did something, they feel a little guilty because they didn’t really do it, they just saw something. It seemed obvious to them after a while.”
― Steve Jobs, Wired 1996

Ideas and Design
“You know, one of the things that really hurt Apple was after I left, John Sculley got a very serious disease. It’s the disease of thinking that a really great idea is 90 per cent of the work. And if you just tell all these other people “Here’s this great idea,” then of course they can go off and make it happen. And the problem with that is that there’s just a tremendous amount of craftsmanship in between a great idea and a great product... Designing a product is keeping five thousand things in your brain and fitting them all together in new and different ways to get what you want. And every day you discover something new that is a new problem or a new opportunity to fit these things together a little different. And it’s that process that is the magic.
― Steve Jobs, PBS, 1996

Consciousness
“If a vivid red rose comes into view, my experience of it is built up over a third of a second, as an initially brutal neuronal competition leads to the shaping of brain activity around my attention toward the rose. An ultrafast, harmonious neuronal rhythm spreads outward from the thalamus and merges my collective neural information of the rose, which is stored in specialist areas throughout my cortex. This high-frequency, long-range, unified mental chunk will also broadcast itself into the prefrontal parietal network, where the experience will come to life.
But if I were faced with a more novel or complex task, my consciousness would show its true potential. My prefrontal parietal network activity would reflect an engaged working memory, a focused attention, and a ravenous search for patterns in order to conquer whatever mental obstacle was in my way. Meanwhile, my specialist regions of cortex for example, areas that store knowledge about objects at the front of the temporal lobes - would take turns to support my consciousness by providing the specific contents to my experiences.”
― Daniel Bor, “The Ravenous Brain”, 2012

Art Communication
“Every art communicates because it expresses. It enables us to share vividly and deeply in meanings… For communication is not announcing things… Communication is the process of creating participation, of making common what had been isolated and singular… the conveyance of meaning gives body and definiteness to the experience of the one who utters as well as to that of those who listen.”
― John Dewey, "Art as Experience", 1934

Storytelling
“The reader should be carried forward, not merely or chiefly by the mechanical impulse of curiosity, or by a restless desire to arrive at the final solution; but by the pleasurable activity of mind excited by the attractions of the journey itself.”
― Samuel Taylor Coleridge, Biographia Literaria, 1906

Writing Papers
“When you conclude a paper, you should always close a door and open a window.”
― Benjamin K. Bergen, "Louder Than Words", 2012

Life Value
“The mark of the immature man is that he wants to die nobly for a cause, while the mark of the mature man is that he wants to live humbly for one.”
― J.D. Salinger, "The Catcher in the Rye", 1951

setembro 12, 2014

Kindle, um problema de materialidade

Anne Mangen da Universidade de Stavanger, Noruega, tem-se dedicado nos últimos anos a analisar e a comparar cognitivamente a leitura em ecrã e em papel. O seu foco de trabalho tem-se centrado sobre o chamado “deep reading”, ou seja a leitura em profundidade, que exige grande poder de absorção, interpretação e memorização. O seu mais recente estudo comparou a leitura entre o Kindle e o papel, e os resultados não foram muito animadores.


Num estudo anterior, “Reading linear texts on paper versus computer screen: Effects on reading comprehension” publicado no International Journal of Educational Research da Elsevier em 2013, Mange dava conta dos problemas dos ecrãs de computador, com conclusões muito claras.
“The results of this study indicate that reading linear narrative and expository texts on a computer screen leads to poorer reading comprehension than reading the same texts on paper. These results have several pedagogical implications. Firstly, we should not assume that changing the presentation format for even short texts used in reading assessments will not have a significant impact on reading performance. If texts are longer than a page, scrolling and the lack of spatiotemporal markers of the digital texts to aid memory and reading comprehension might impede reading performance.”, Anne Mangen no International Journal of Educational Research
Posteriormente Mange realizou novos estudos, trocando o PC por iPads, “Lost in the iPad: Immersive reading on paper and tablet” (a aguardar publicação), e os resultados não foram propriamente diferentes. Aliás Mangen refere que os resultados indicam que os aspectos emocionais sofrem na experiência,
"In this study, we found that paper readers did report higher on measures having to do with empathy and transportation and immersion, and narrative coherence, than iPad readers," Anne Mangen in The Guardian
Os ecrãs de computador sempre foram mal vistos, nomeadamente por causa do brilho e efeitos sobre os olhos, levando as pessoas a imprimir resmas de papel para poderem ler, algo que os iPads pouco fizeram para apaziguar, mesmo com o marketing dos “ecrãs retina”. Por outro lado, uma tecnologia que fez frente a esses problemas, e vingou, foi a E-ink desenvolvida pela Amazon Xerox e tornada popular pela Amazon e a sua plataforma Kindle. Esta tecnologia permite simular o papel ao ponto de não emitir luz, e ser melhor legível quanto mais luz sobre esta incide, à semelhança do que acontece com o papel. Nesse sentido, realizar um estudo comparativo entre o Kindle e o papel era o que realmente importava, e foi isso que Mangen fez.

Mangen juntou-se a Jean-Luc Velay da Universidade de Aix-Marseille e realizaram um estudo comparativo, Kindle DX versus papel, com 50 alunos de licenciatura, com hábitos de leitura próximos. A comparação centrou-se sobre aspectos da experiência de leitura, com questões que procuravam compreender o alcance emocional e cognitivo da experiência. Ou seja, a ideia passava por inquirir os leitores sobre factos concretos, racionalizados e memorizados, assim como sobre interpretações do que tinha sido lido, procurando chegar às emoções e à imaginação. Podemos ver abaixo, um esquema do inquérito, e ver claras diferenças entre os aspectos, mais cognitivos ("Time and events" & "Plot reconstruction") e os mais emocionais ("Characters" & "Settings").

“The haptic and tactile feedback of a Kindle does not provide the same support for mental reconstruction of a story as a print pocket book does… When you read on paper you can sense with your fingers a pile of pages on the left growing, and shrinking on the right… You have the tactile sense of progress, in addition to the visual ... [The differences for Kindle readers] might have something to do with the fact that the fixity of a text on paper, and this very gradual unfolding of paper as you progress through a story, is some kind of sensory offload, supporting the visual sense of progress when you're reading. Perhaps this somehow aids the reader, providing more fixity and solidity to the reader's sense of unfolding and progress of the text, and hence the story.” Explicação de Anne Mangen para as diferenças nos resultados, in The Guardian
O que posso eu dizer sobre estes estudos? Em primeiro lugar que não me surpreendem, já que corroboram uma imensidade de outros estudos que temos vindo a trabalhar no âmbito do projecto engageBook, e que de certo modo nos levaram ao desenvolvimento do BridgingBook. Por outro lado, e agora com carácter pessoal, posso dizer que todos estes estudos corroboram cabalmente a minha experiência pessoal - “PC, iPad e Kindle” versus “Papel” - dos últimos anos. Se nunca me habituei a ler no ecrã do computador, com o iPad consegui passar a fazê-lo, mas isso só se tornou um hábito a partir do momento em que adquiri um Kindle.

BridgingBook, uma ponte entre o papel e o digital

Em termos pessoais, este Verão realizei uma experiência que foi abdicar de todos os media e artes, e dedicar-me exclusivamente aos livros, tarefa que realizei em kindle e em papel. Alguns livros foram lidos integralmente em papel, outros integralmente em Kindle, e outros em ambos, lendo partes em papel e partes em Kindle. Destes, os lidos em ambos os formatos, quando terminada a leitura, não senti propriamente grande diferença. Apesar disso, e com o passar do tempo, fui notando a minha preferência a inclinar-se para o Kindle! Esta preferência agudizou-se quando este mês fui recuperar livros maiores para ler, clássicos de mil páginas. Isto porque nestes casos específicos o Kindle supera totalmente o papel em termos de conforto de leitura!

Leituras deste Verão (12 em Papel, 3 em Kindle, 3 em Kindle e Papel)

Mas relendo estes estudos, e analisando à distância do tempo a experiência deste Verão, fazendo uma introspecção honesta e sincera, preciso de confessar que a minha experiência de leitura, dos lidos apenas em Kindle, foi diferente. Acredito que da experiência gerada pelo Kindle restou menos da componente emocional, porque menos racional. Ou seja, com o tempo, a minha aparente incapacidade para recordar mais concretamente detalhes da história, retira-me acesso ao prazer emocional sentido aquando da leitura. Ou seja, a experiência no momento foi emocional, mas o alegado facto de os dados da leitura se perderem, fizeram com que algumas emoções sentidas também se tivessem perdido!

A minha explicação para isto está de certo modo espelhada no que Mangen também diz, e tem que ver com o modo como opera a nossa memória. Assim, o Kindle apesar de muito mais cómodo em termos de mobilidade, apresenta vários problemas em termos de multisensorialidade. Ou seja, não é possível para mim criar uma percepção somática da obra, enquanto um todo. O Kindle falha por não providenciar o toque individual de cada página, assim como o entre-páginas, falha por impedir a criação de uma mapa mental das diferentes secções e do todo do livro, e falha por não permitir a alocação das partes do livro (páginas, alto de páginas à esquerda, e à direita, etc.) aos momentos de leitura, impedindo assim a criação de selos temporais e sensoriais da leitura. É verdade que à medida que nos tornamos mais experientes no uso do Kindle passamos a utilizar melhor os dados de "Locations" e "Percentagens", mas estes são dados racionalizados, que não nos chegam via sentidos alternativos à visão.

Consequentemente, no final da leitura a nossa memória possui menos pistas e dicas que ajudem a colar os nós e os eventos da história. O nosso cérebro funciona num modelo associativo, e a nossa memória recupera informação, realizando triangulações de informações. Neste caso triangulando o que foi dito na história, com aquilo que eu inferenciei no momento para interpretar, juntamente com o mapa somático-sensorial vivido no momento. Ora é esse mapa somático-sensorial que se perde com o objecto digital, porque ausente de materialidade, de corpo.

Nada disto está fechado, continuaremos a ler cada vez mais em digital, mas os estudos não auguram grandes possibilidades para um mundo exclusivamente feito de bits e bytes. Concordo ainda com Mangen quando refere que esta não é uma mera questão de ser ou não ser nativo digital, pois vejo isto como algo muito mais essencial, é algo que lida com a nossa biologia, o nosso corpo. Habituados a colocar a intelectualidade no plano do imaterial, esquecemos que o saber se constrói e edifica de forma mais eficiente em nós, quando nos chega por via da acção material. Ora, estes estudos mostram que até a simples materialidade de um livro pode fazer diferença.


Nota final: Esta discussão levanta ainda outras problemáticas, nomeadamente a comparação da experiência cognitiva de uma história, quando realizada num livro físico versus um filme/série ou videojogo. Isto porque, tanto o filme/série como o videojogo são imateriais, ainda que no caso do jogo exista uma componente acção via interface física. Mas os estudos desta natureza são demasiado complexos, já que nem o filme/série nem o videojogo, podem apresentar exactamente a mesma experiência narrativa de um livro, serão sempre adaptações. Daí que realizar um estudo que consiga separar as variáveis da adaptação, das variáveis da materialidade, para não falar das variáveis da linguagem, é algo praticamente impossível de realizar. Isto não invalida que não possamos especular, teorizar e acima de tudo reflectir sobre tudo isto.

setembro 01, 2014

Livros de Agosto 2014

Este ano decidi dedicar o mês de Agosto quase em exclusivo à literatura, eliminando do cardápio os videojogos, o cinema, os jornais e a internet (televisão já não vejo no resto do ano). Mesmo assim ainda vi alguns filmes com os miúdos, poucos, tendo dedicado quase todo o meu tempo a ler. Foi assim um dos meses mais frutíferos em termos quantitativos, e não menos qualitativos, no qual aproveitei para ler Saramago, Peixoto, Vann, Sartre, Tolstoy, Murakami, McEwan, Kundera, Proust, Kafka, Dick e Cunningham entre outros.

Livros de Agosto 2014 [Goodreads]

Fiz breves análises de cada um destes livros que podem ser lidas no Goodreads, e fiz ainda três análises um pouco mais extensas aqui no blog de The Martian, O Consolo da Filosofia e A Obra-Prima Desaparecida.

agosto 27, 2014

O Quadro Perdido

Depois de me ter aqui maravilhado com a ciência e tecnologia por detrás de "The Martian" (2014), agora dou conta do meu maravilhamento com a arte por detrás da aventura descrita em "The Lost Painting: The Quest for a Caravaggio Masterpiece" (2005). Jonathan Harr fez um belíssimo trabalho de descrição de um evento real, um quadro de Caravaggio perdido em Itália, em 1602, é encontrado na Irlanda, em 1990.

"The Lost Painting: The Quest for a Caravaggio Masterpiece" (2005) de Jonathan Harr 

Os eventos da descoberta foram descritos em 1993 na The Burlington Magazine por Sergio Benedetti, o restaurador italiano a trabalhar na Irlanda e responsável pela descoberta. Jonathan Harr por seu lado, depois de escrever um artigo de jornal sobre o assunto resolveu investigar em maior profundidade as várias etapas da descoberta, entrevistar os vários envolvidos, e daí avançar para a escrita de um livro no formato de romance.

"Cattura di Cristo" [A Captura de Cristo] (1602) Caravaggio, National Gallery of Ireland

Se o livro é interessante, o que me atraiu desde o início para este livro foi sem dúvida a obra de Caravaggio. Digo a obra, porque quanto mais sei sobre a pessoa, menos quero saber. Caravaggio como bom artista era bastante excêntrico, talvez um dos mais excêntricos dos artistas da renascença italiana. Mas a sua obra apesar de esquecida por vários séculos, dado o seu carácter pouco classicista algo agressivo e até terrífico, é para mim, em termos estéticos, uma das mais interessantes do período. O meu interesse em Caravaggio está totalmente centrado sobre o magnífico trabalho que ele conseguiu desenvolver no uso da luz. É algo que não encontramos em mais nenhum artista antes de si, a capacidade para contrastar o claro e o escuro com simultânea intensidade e delicadeza, demonstrando em Caravaggio uma percepção visual absolutamente impressionante.

agosto 21, 2014

"The Martian" (2014)

The Martian” de Andy Weir ficará como um dos livros do ano 2014, pela aventura que nos conta, assim como pela aventura que lhe deu origem. Publicado pelo próprio autor em 2012, a versão final revista foi apenas editada pela editora Crown em Fevereiro de 2014. “The Martian” trata um assunto que não é novo, a reacção do ser humano quando numa situação extrema de solitude humana, precisa de sobreviver num mundo desconhecido, história que conhecemos de Robinson Crusoe, mas que serve de pano de fundo a imensas outras histórias que versam sobre o herói incompreendido. Neste caso, o nosso protagonista foi deixado no planeta Marte sozinho, após o cancelamento de uma missão mal-sucedida, e tem de procurar sobreviver até que alguém possa vir em seu socorro.


Dito assim apenas “The Martian” não seria mais do que uma pequena história de exploração de um ambiente que tem servido as fantasias de muitos dos amantes de Ficção Científica (FC). É mais porque “The Martian” foi escrito com base em muita pesquisa científica, e antes de chegar à versão final agora publicada, os seus dados foram confrontados e revistos por vários especialistas internacionais em várias das áreas científicas abordadas no livro. Ou seja, a especulação que podemos ler neste livro, não é mera imaginação romanceada, é antes o desenho de um futuro próximo possível, colocado sob a forma de romance, fruto de três anos de investigação.

Imagem de simulação da cratera Mojave em Marte [ver mais]

The Martian” vai para além do mero rótulo de Hard SF, dado o grau de verossimilidade, mas acima de tudo o grau de proximidade no tempo da possibilidade efectiva de acontecer o que é descrito. Ou seja, o trabalho realizado por Andy Weir está agarrado a quase tudo o que já hoje temos ao nosso dispor em termos de tecnologia e conhecimento. Para quem tem acompanhado as missões da NASA a Marte nos últimos anos, é muito fácil sentir a ligação entre essas realidades e aquilo que nos vai surgindo ao longo do livro. É tudo muito próximo, coerente e estruturado, faz sentido e é crível. E essa é para mim a principal razão do sucesso deste livro.
“I originally wrote “The Martian” as a free serial novel, posting one chapter at a time to my website.  Thanks to my previous attempts at writing, I had a small but loyal following of readers who read each chapter as I finished it. This turned out to be an amazing process. I got tons of feedback as the story progressed, and I fine-tuned the novel as I went along… I’ve received fan emails from astronauts, people in Mission Control, nuclear submarine technicians, chemists, physicists, geologists and folks in pretty much every other scientific discipline. All of them had nice things to say about the book’s technical accuracy, though some of them also sent formal proofs detailing where I’d gone wrong. I corrected those problems (mostly) in the final edition that went to print.” [fonte]
Em termos literários não é um grande livro, embora em termos narrativos esteja muito concebido, quase ao nível de um Dan Brown. Deste modo ao fim de 1/5 do livro somos sugados e não mais queremos parar de ler até virar a última página. E isto é tanto mais interessante quando sabemos que este é apenas o segundo livro escrito por Andy Weir, ambos auto-publicados, que ele vem da área da informática e que dedica grande parte dos seus tempos livres ao cálculo de dinâmicas orbitais. Deste modo a sua preocupação central, além da coerência científica, passava por garantir o balanceamento do storytelling, não a experimentação estética.
“Was I worried about whether my scenario would give me enough plot to sustain a novel? Did I wonder if being that realistic would make a boring story? Hell yes… the deeper into the book I got, the more excited I became, because I found that I was arriving at that place writers dream of: I was coming up with plot twists that genuinely surprised me, yet felt totally organic to the situation I’d dreamed up. This allowed me to do what writers treasure more than anything else: Catch the reader off-guard. There’s nothing better than knowing you’re going to outwit the reader. And the type of people who read sci-fi are very difficult to outwit.” [fonte]
Dito isto, “The Martian” é o tipo de história que fará as delícias de qualquer amante de histórias de aventuras, em especial dos amantes de FC. Já a forma detalhada como foi tratado o tema da sobrevivência técnica dirá muito em especial a todos os engenheiros, ou todos o que possuem um espírito versado em ciência e tecnologia. O nosso astronauta sobrevivente, Mark Watney, possui dupla especialidade, é engenheiro mecânico e botanista, daí que apresente um largo leque de conhecimentos sobre o funcionamento do ecossistema de Marte assim como das maquinarias deixadas pela missão abortada. Ao longo do livro cada uma das suas acções é fundamentada em dados e análises concretas apresentadas por meio de um diário, o que para algumas pessoas se poderá tornar enfadonho, mas para quem conseguir acompanhar se torna tão cativante como viciante, e assim na essência do interesse narrativo.

Andy Weir tinha publicado o livro em capítulos grátis na sua página, mas após o pedido de vários leitores criou uma versão completa para o Kindle que colocou na Amazon, a 99 cêntimos porque a Amazon não permitia livros grátis. Em pouco tempo o livro entrou no Top 5 de FC da Amazon, com milhares de downloads, o que chamou a atenção de editores, assim como de Hollywood. "The Martian" está neste momento em produção pela 20th Century Fox, contando com dois pesos pesados de Hollywood, Ridley Scott na realização e Matt Damon na interpretação. Podemos dizer que é mais um caso de sucesso promovido pela internet, mas não podemos esquecer que se assim é, se deve mais ao imenso trabalho do autor, todo o investimento em treino de escrita com pequenas histórias assim como ao estudo de fundo sobre o assunto, tudo vertido numa obra original, e não ao mero poder de propagação da rede.


Atualização
O livro já foi editado em português pela TopSeller. Não sei como está a tradução, mas o original é bastante acessível para quem está habituado a ler inglês técnico.

janeiro 21, 2014

"Emoções Interactivas", disponível gratuitamente

Cinco anos depois de ter sido publicado em papel, o meu livro "Emoções Interactivas. Do Cinema para os Videojogos" (2009) passa a estar disponível gratuitamente no formato PDF. Para quem o quiser adquirir em papel, pode continuar a fazê-lo nas lojas ou no próprio editor.


Este livro foi o resultado de cinco anos de pesquisa, resultando na minha tese de doutoramento em 2007. Depois de editado e reformatado para uma leitura mais acessível, saiu em 2009 na colecção Comunicação e Sociedade do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Durante os primeiros cinco anos mantive uma página dedicada, a que nunca consegui dar a atenção necessária, por isso acabei por criar uma página no Facebook para quem pretender comunicar sugestões, críticas, etc.


É um livro que trata o contar de histórias em universos virtuais a partir de uma abordagem multidisciplinar que mistura o Cinema, os Videojogos, a Emoção e a Tecnologia. Os capítulos que poderão ser mais relevantes para quem estuda o tema são os da primeira parte. Na segunda parte do livro é feita a apresentação do projecto realizado, e apresentam-se resultados que podem ser relevantes para quem trabalha no campo do design de mundos virtuais.
PARTE I

1. Natureza da Emoção Humana
2. Comunicação Afectiva
3. Da Ilusão Cinematográfica
4. Cinema e Tecnologia
5. Cinema de Entretenimento
6. Propriedades dos Ambientes Virtuais
7. Entretenimento Digital
8. Storytelling Interactivo


PARTE II

1. Estudo Empírico do Espectro Emocional
2. Problemática da Divergência Emocional
3. Análise de Conteúdos
4. Avaliação de classes e parâmetros
5. Correlação de classes e parâmetros
6. Caso Específico da Tristeza
Aqui fica então o link para descarregar o livro completo, no RepositoriUM ou no Academia.Edu.

dezembro 05, 2013

Entrevista sobre o livro "Videojogos em Portugal"

Dei uma entrevista para a revista Eurogamer Portugal a propósito do livro "Videojogos em Portugal. História, Tecnologia e Arte". Nesta falo um pouco do livro, do processo da escrita, dos objetivos, do público alvo e de alguns dos problemas da criação de jogos em Portugal. Podem ver aqui.

outubro 01, 2013

cognição e biologia na base do sucesso

"How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" (2012) de Paul Tough, procura respostas para o sucesso e insucesso das crianças nas sociedades modernas. Vem de encontro a muitos estudos que se têm feito nos últimos anos no campo cognitivo e biológico, apresentando algumas novidades a partir desse cruzamento de saberes. É um livro de divulgação jornalística que procura iluminar um pouco mais sobre a área, sem tentar dar respostas cabais, ou receitas, assumindo que modelos padrão para lidar com a individualidade das crianças, é coisa que não existe. O livro apresenta uma teorização interessante à volta da oposição entre as competências cognitivas, avaliadas pelos testes de QI, e os traços de personalidade como a curiosidade, a escrupulosidade, a auto-disciplina, ou a resiliência.


Assim o fundamento que suporta todo o livro, e é o seu contributo mais interessante, passa pela apresentação da provável razão pela qual as crianças falham na escola, acabando por fracassar nas suas vidas, incapazes de  concretizar os seus sonhos, contaminando as gerações que os rodeiam. Durante décadas acreditámos, e os estudos demonstravam isso mesmo, que as crianças provenientes de lares mais pobres tinham menor sucesso escolar. As razões prendiam-se com a falta de estimulação cognitiva em casa, tanto pela pobreza expressiva dos pais, como pela falta de acesso a cultura e abertura à diferença.

O grande problema desta análise é que ela estava baseada numa única causa do sucesso, aquilo que Tough, chama de "Hipótese Cognitiva". Esta hipótese assenta a causa do sucesso exclusivamente em competências cognitivas do tipo verbal, matemáticas, análise de padrões, no fundo aquilo que avaliamos nos chamados Testes de Inteligência. Aquilo que Tough aqui apresenta são vários estudos realizados nos últimos anos nos campos da psicologia, economia, educação e neurociência que vieram acrescentar um novo ingrediente a esta análise, o "carácter", e que é constituído por qualidades, ditas não-cognitivas, como a preseverança, consciência, otimismo, curiosidade e auto-controlo. Para suportar esta ideia, Tough apresenta dois estudos que por si só são suficientes para demonstrar toda a racionalidade por detrás desta teorização.

1 – A hipótese cognitiva: QI
O Programa GED, é um programa americano que permite aos alunos que desistiram no secundário, ter acesso a um diploma do secundário, mediante a realização de um exame que avalia se estes possuem as mesmas competências cognitivas dos alunos que frequentaram o secundário. O fundamento deste exame é a hipótese cognitiva, que acredita que um aluno que possua as mesmas competências cognitivas de um aluno do secundário, não deve perder tempo a fazer a escola, pode realizar o teste e obter o mesmo reconhecimento do estado que o outro aluno.

O que confere com os estudos realizados à posteriori, em termos de QI, que demonstraram que os alunos que fizeram o GED não se diferenciavam dos alunos que tinham feito toda a escola. O problema surge quando analisamos o desenvolvimento e progresso destas pessoas para além deste patamar. Nos estudos realizados por James Heckman, este encontrou que
“just 3 percent of GED recipients were enrolled in a four-year university or had completed some kind of post-secondary degree, compared to 46 percent of high-school graduate (..) that when you consider all kinds of important future outcomes—annual income, unemployment rate, divorce rate, use of illegal drugs—GED recipients look exactly like high-school dropouts, despite the fact that they have earned this supposedly valuable extra credential, and despite the fact that they are, on average, considerably more intelligent than high-school dropouts” (p.13)
Ou seja, o que podemos ver a partir daqui, é que os alunos que realizaram o ensino secundário, ao terem persistido na escola, obtiveram algo mais do que as competências cognitivas, que os levou a suceder no seu futuro. Heckman conclui que
“what was missing from the equation... were the psychological traits that had allowed the high-school graduates to make it through school. Those traits - an inclination to persist at a boring and often unrewarding task; the ability to delay gratification; the tendency to follow through on a plan - also turned out to be valuable in college, in the workplace, and in life generally” (p.13)
Visto apenas através deste estudo, estamos no reino da pura especulação, o número de variáveis não controláveis é demasiado grande. Contudo os estudos sobre esta hipótese, não se resumem a isto. São muitos os estudos conhecidos sobre a relação entre as competências de auto-controlo e de sucesso na vida, nomeadamente o experimento do Marshmellow de Walter Mischel, mas não só. Tough apresenta ainda vários estudos referentes ao carácter que suportam estas evidências. Mas antes de entrar nesses, quero apresentar o segundo ponto que foi para mim imensamente revelador desta hipótese, mas também daquilo que está em jogo na educação das crianças desde tenra idade.

2 – Hipótese Biológica: Stress
Um estudo realizado em 2009 por Gary Evans e Michelle Schamberg da Cornell University procurava estudar as diferenças entre as crianças provenientes de estratos diferenciados, tendo como metodologia testes das funções-executivas (as funções cognitivas responsáveis pelo planeamento e execução de atividades). Usaram como corpo de estudo, 195 jovens com 17 anos, que já seguiam desde que tinham nascido. Metade viviam em ambientes abaixo da linha de pobreza, e a outra metade em típicas casas de classe-média. O teste consistia no simples jogo “Simon Says” (na foto abaixo).


A primeira descoberta, foi que os miúdos que tinham passado mais tempo abaixo do limiar da pobreza, apresentavam menor desempenho no jogo. Ou seja, uma criança que tivesse vivido 10 anos abaixo do limiar, desempenhava pior do que um que tivesse vivido apenas 5 anos. Até aqui nada de novo. A novidade do estudo aconteceu quando eles levaram em conta a medição de variáveis biológicas – pressão sanguínea, índice de massa corporal, e níveis de hormonas ligadas ao stress, tais como o cortisol – que tinham realizado aos 9 anos de idade, e novamente aos 13 anos, para determinar os níveis de stress, ou em termos científicos, a "carga alostática" (“allostatic load”) das crianças. Interessava analisar os níveis de stress fortes, causados por situações como,
“physical and sexual abuse, physical and emotional neglect, and various measures of household dysfunction, such as having divorced or separated parents or family members who were incarcerated or mentally ill or addicted” (p.29)
Assim conseguiram correlacionar as três variáveis: os resultados dos testes do jogo; com o historial de pobreza; e com a carga alostática. Mas foi ao aprofundar a análise estatística, que se deu o choque: a variável de pobreza era irrelevante. Não era o fator do tempo vivido na pobreza que condicionava a capacidade cognitiva no jogo, mas antes era o stress vivido. Ou seja, até aqui podíamos pensar que a criança de classe média alta, apresentava melhores resultados na memorização de padrões, por ter genes provenientes de pais bem sucedidos, por estar numa escola melhor, por ter acesso a mais jogos, livros e informação. Mas o que descobrimos foi que uma criança que viva no seio de uma família pobre, mas tenha estabilidade emocional, proporcionada por uma família carinhosa e protetora, que não tenha de atravessar situações de grande stress na sua vida, pode apresentar o mesmo desempenho da criança dita rica.

O stress afecta o crescimento do nosso cérebro. Em confronto com uma situação stressante, o nosso cérebro manda libertar hormonas no sangue, que produzem emoções de ansiedade e medo. Quando estas ações acontecem muitas vezes, e nomeadamente com grande intensidade, sem qualquer atenuação por parte dos seres próximos, família, o corpo vai ganhando habituação a viver sob stress, ou seja passa a reagir de forma muito mais carregada, por não poder antecipar apaziguamento. Os sujeitos passam a conseguir controlar com menor eficácia os seus níveis de stress, e os seus impulsos descontrolam-se muito mais facilmente. Deste modo quando são confrontados com novas situações, como a realização de provas, testes, exames ou responder a um pedido ou ordem de um colega ou professor, tendem a reagir de forma mais impulsiva, já que a ansiedade sobe, e o medo toma conta das suas ações. Esta impulsividade nem sempre é exteriorizada, certos indivíduos tornam-se agressivos, outros simplesmente bloqueiam interiormente.

Assim, a carga alostática, torna-se na variável mais importante a controlar, para garantir o acesso ao estágio inicial, isto é a permanência e realização da escola por parte da criança. Num estudo no Cook County Juvenile Temporary Detention Center, encontraram-se as seguintes variáveis,
 “84 percent of the detainees had experienced two or more serious childhood traumas and that the majority had experienced six or more. Three-quarters of them had witnessed someone being killed or seriously injured. More than 40 percent of the girls had been sexually abused as children. More than half of the boys said that at least once, they had been in situations so perilous that they thought they or people close to them were about to die or be badly wounded” (p.49). 
3 – Treinando o Carácter
O resto do livro é passado a discutir formas, métodos e modelos para treinar o carácter. Tough acaba socorrendo-se da Psicologia Positiva, dos trabalhos de Martin Seligman. No livro Character Strengths and Virtues: A Handbook and Classification (2004) Christopher Peterson e Martin Seligman apresentam uma primeira abordagem para identificar e classificar os traços psicológicos positivos dos seres humanos. Aí são descritos os caracteres essenciais, categorizados em 6 grandes virtudes. Desse modo criaram uma tabela e testes que permitem apontar o carácter, e permitem definir objectivos a atingir, que como diz Tough, não são imbuídos de moral nem ética, mas antes de efeitos práticos de realização na vida. As seis virtudes aqui apresentadas, são fruto de vastos estudos através do tempo e de forma inter-cultural.


Tough investe bastante tempo a trabalhar dois exemplos de escolas americanas, uma delas a academia KIPP, reconhecida pela sua capacidade para pegar nos alunos e conduzi-los até a Universidade. A discussão em redor dos elementos essenciais que definem o caráter é grande, e sem consensos, no entanto todos reconhecem a sua enorme importância. Deixo aqui uma tabela de diagnostico de carácter aplicada na KIPP.

Nesta tabela da KIPP fica bem evidenciado que a solução para formar miúdos para seguirem um caminho bem sucedido, está longe de se determinar pela mera lecionação de disciplinas de matemática, línguas ou outras. A formação do ser humano, ao nível do carácter, é extremamente relevante para que este consiga potenciar o melhor de si. É claro que muito disto devia vir de casa. E eu continuo a acreditar que a função da escola, é educar a mente, enquanto a da família é educar o carácter. Mas sei também, que uma grande parte das famílias não está preparada para dar esta bagagem aos seus filhos. Não chega ter estudado, ter dinheiro, ter acesso, é preciso mais do que isso, é preciso compreender o mundo em que se vive, e acima de tudo, educar todos os dias para a vivência com o outro. Cada vez acredito mais, que tudo se resume à interação social, que é aí que reside o cerne que alavanca todo o nosso desempenho nas restantes áreas.

setembro 10, 2013

Google, o braço direito do governo americano?

Estive quase para desistir de “The New Digital Age” (2013) logo após a leitura da introdução. Dei uma segunda hipótese e li o primeiro capítulo, mas mesmo aí a minha vontade de deixar de ler não se desvaneceu. Um texto carregado de especulações banais, baseadas em banalidades da atualidade, um texto que pretende prever o futuro, e nos fala quase sempre do agora e do futuro imediato, cinco ou dez anos, completamente incapaz de ver além dos muros do real atual. Um livro que fala da vida humana, e dos seus condicionamentos, como trivialidades.

"Ruined online reputations might not lead to physical violence by the perpetrator, but a young woman facing such accusations could find herself branded with a digital scarlet letter that, thanks to the unfortunate but hard-to-prevent reality of data permanence, she’d never be able to escape. And that public shame could lead one of her family members to kill her."
Porque não parei então? A razão é simples, por causa dos autores. Não pelo conhecimento que detêm, que o livro dá bem conta, mas antes pelo poder que detêm. Logo ao abrir o livro, damos de caras com esse poder, quando vemos quem assina as mais elogiosas recomendações ao livro - Henry Kissinger, Bill Clinton, Tony Blair, Madeleine Albright, Michael Hayden, ex-diretor da CIA. Pouco depois de encomendar o livro, veio a público o projeto PRISM, revelado por Edward Snowden. A Google, e estes dois senhores estão no centro de todo este problema, por isso é importante perceber para onde nos querem levar, ainda que tenhamos de ler nas entrelinhas daquilo que escrevem.
"Identity will be the most valuable commodity for citizens in the future, and it will exist primarily online. Online experience will start with birth, or even earlier. Periods of people’s lives will be frozen in time, and easily surfaced for all to see. In response, companies will have to create new tools for control of information, such as lists that would enable people to manage who sees their data."
Ao longo de todo o livro, não existe a mais pequena referência ao PRISM, nem a qualquer outro projeto, ou programa, que possa apresentar qualquer similaridade com este. O livro começa com a banalidade das previsões futuras sobre as tecnologias da comunicação, e avança para algo que não podia ser pior, o terrorismo, os terroristas, os maus e os bons. Cheguei a questionar-me se estava a ler um livro escrito por dois responsáveis de uma das empresas de tecnologias de comunicação mais poderosas do planeta, ou se um livro do governo americano. Ou ainda, um livro escrito por estagiários que fazem o seu melhor, através da visão simplista, e tão formatada, que ainda detêm do mundo. A narrativa é tão decalcada, que parece quase existir apenas um mundo, e nada mais, tão simples, tão claro e tão esquematizável, que os autores parecem dizer, “como todos não conseguem ver o mundo como nós?”.
“By 2025, the majority of the world’s population will, in one generation, have gone from having virtually no access to unfiltered information to accessing all of the world’s information through a device that fits in the palm of the hand.”
"the printing press, the landline, the radio, the television, and the fax machine all represent technological revolutions, but all required intermediaries (..) [the digital  revolution] is the first that will make it possible for almost everybody to own, develop and disseminate real-time content without having to rely on intermediaries."
Aceder a “toda” a informação?!! Disseminar informação sem intermediários?!! Mas... é de ficar sem palavras com tanta barbaridade junta. Aceder a toda a informação, talvez se refiram ao PRISM, porque não vejo como se pode afirmar tão assertivamente coisas destas. Quanto aos intermediários, estes senhores esquecem que são eles próprios neste momento os intermediários, ou será que por proferirem o mantra “do no evil”, serão transparentes?!!
“the promise of exponential growth unleashes possibilities in graphics and virtual reality that will make the online experience as real as real life, or perhaps even better.”

“On the world stage, the most significant impact of the spread of communication technologies will be the way they help reallocate the concentration of power away from states and institutions and transfer it to individuals.”
Impressiona-me como foi possível escrever um livro desta forma, onde estavam os editores? Como se podem afirmar coisas sobre o futuro, ainda que imediato, como se de certezas se tratassem. Mas pior ainda, como se podem afirmar certezas num parágrafo, para na página, ou capítulo, seguintes, de imediato se contradizerem. Aonde pára a coerência discursiva? Ou isto são apenas umas ideias soltas atiradas para umas folhas em branco? É o que mais me parece. Ideias interessantes, que vamos discutindo com os amigos, mas que tratam assuntos complexos, com divergentes perspectivas, e que hoje podemos defender de um lado, e amanhã do outro. Mas se isso funciona no discurso oral, em construção contínua, não funciona num livro, ou não deveria funcionar. Um livro deveria traduzir um discurso reflectido, meditado, maturado, estruturado, e não uma monte de ideias engraçadas. Morozov explica muito bem como terá sido escrito o livro,
“In the simplicity of its composition, Schmidt and Cohen’s book has a strongly formulaic —perhaps I should say algorithmic— character. The algorithm, or thought process, goes like this. First, pick a non-controversial statement about something that matters in the real world —the kind of stuff that keeps members of the Council on Foreign Relations awake at their luncheons. Second, append to it the word “virtual” in order to make it look more daring and cutting edge. (If “virtual” gets tiresome, you can alternate it with “digital.”) Third, make a wild speculation—ideally something that is completely disconnected from what is already known today. Schmidt and Cohen’s allegedly unprecedented new reality, in other words, remains entirely parasitic on, and derivative of, the old reality.”
Mas fica tudo muito claro quando se percebe quem são verdadeiramente as pessoas por detrás deste livro, de onde vieram, como se encontraram, e o que é realmente pretendem com este livro.
“We two first met in the fall of 2009, under circumstances that made it easy to form a bond quickly. We were in Baghdad, engaging with Iraqis around the critical question of how technology can be used to help rebuild a society.”

“Eric confirmed his feeling that the technology industry had many more problems to solve, and customers to serve, than anyone realized. In the months following our trip, it became clear to us that there is a canyon dividing people who understand technology and people charged with addressing the world’s toughest geopolitical issues, and no one has built a bridge. Yet the potential for collaboration between the tech industry, the public sector and civil society is enormous.”
Cá está o que eles se propõem fazer com este livro, estabelecer a ligação entre os produtores de tecnologia e os clientes da política. Não é por acaso que um dos autores, Jared Cohen, o atual diretor da Google Ideas, foi o consultor de Condoleezza Rice para as questões das relações internacionais com o Médio Oriente, e é ainda consultor do Centro Nacional de Contraterrorismo dos EUA. Isso explica, porque razão a palavra “Iraque” aparece no livro mais de meia centena de vezes, assim como se podem encontrar abundantemente as palavras – “Paquistão”, “Afganistão”, “Irão”, “Israel”, “Somália”, “Terrorismo”, “Al-Qaeda”, “Assange”, “China”, “Coreia do Norte”. Mas, o que é a Google afinal!?

Um livro escrito pelo Chairman da Google, Eric Schmidt, e pelo diretor da Google Ideas, Jared Cohen, com o nome “The New Digital Age”, não deveria ser um livro sobre o futuro das tecnologias digitais? Não deveria ser um livro sobre o futuro da conectividade? Não deveria ser um livro sobre as inovações de fundo das tecnologias de comunicação? Ainda que pudesse, e devesse, falar dos seus impactos sociais e potenciais alterações antropológicas, e porque não até psicológicas nos campos emocional e cognitivo, porque é que haveria de se concentrar sobre o terrorismo, e apenas na sua leitura política (americana)?!

Porque dos sete capítulos, apenas os primeiros dois se dedicam aos impactos gerais na sociedade. São dedicados cinco capítulos completos à discussão do impacto das tecnologias da comunicação ao nível da política global, americana. Ou seja, mais de três quartos do livro são passados a discutir ideias soltas, sem rumo, sem estrutura organizativa, veiculadas apenas pela narrativa vigente da supremacia da política americana, alegadamente democrática, e de imposição de uma alegada democracia, pela força, ao resto do mundo!!! No final somos servidos com o antídoto que todos os problemas resolverá,
 "The best thing anyone can do to improve the quality of life around the world is to drive connectivity and technological opportunity. When given the access, the people will do the rest. They already know what they need and what they want to build."
Se ainda assim não estiverem convencidos do quão rasteiro este livro é, aconselho vivamente a leitura da extensa análise realizada por Morozov, que começa de modo irónico, brincando com a incongruência e infantilidade da escrita do livro, para depois atacar em maior profundidade os erros ao nível do uso da tecnologia em contextos de geopolítica. E se ainda tiverem paciência leiam a resposta de Assange aos autores.