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agosto 13, 2023

A Era das Intuições

Eric Kandel ganhou o Nobel de Medicina em 2000 pelo seu trabalho na área da fisiologia da memória. Depois do prémio, resolveu escrever vários livros de divulgação, sendo este “The Age of Insight” (2012) um dos mais citados nomeadamente na área dos estudos da consciência (ex. Anil Seth), pelo modo como relaciona os processos de consciência com os processos criativos. Dito isto, o livro é mais e menos, porque tenta fazer um dois em um, ao escrever toda uma primeira parte de enaltecimento à ciência criada na cidade de Viena, no início do século vinte, daí o subtítulo — “The Quest to Understand the Unconscious in Art, Mind, and Brain, from Vienna 1900 to the Present”; e uma segunda parte, dedicada à discussão da teorização científicia que suporta a existência da arte. A primeira parte é uma espécie de resposta, agradecimento, à oferta de cidadania da cidade após o Nobel, que tinha sido uma resposta de Viena ao facto de Kandel afirmar que o seu Nobel não era austríaco, mas americano-judeu


junho 03, 2023

Distorção da realidade

Dei por mim quase a chorar e a ter de me afastar da televisão quando esta semana estava sentado ao lado do meu pai que via um documentário no National Geographic sobre vida selvagem. Primeiro, foi um crocodilo que abocanhou o traseiro de uma cria de bufalo e ficou ali a prende-la durante uns agoniantes 10 minutos, enquanto a mãe da cria se limitava a lamber-lhe o focinho, até que o crocodilo a puxou para baixo e a afogou. Depois, veio um macho zebra que começou a atacar violentamente uma cria zebra porque esta não lhe pertencia, segundo o narrador para evitar que essa cria se revoltasse contra ele mais tarde, tendo a mãe da cria tudo feito para evitar que o macho se aproximasse, mas acabando por não conseguir evitar o pior.

março 26, 2023

O não-consciente de Cormac McCarthy

"Stella Maris" é o segundo volume da obra que Cormac McCarthy lançou em 2022, 16 anos depois do seu último livro, agora com 89 anos. Se no primeiro volume, "O Passageiro", nos introduziu a um mundo denso e complexo de ações humanas para as quais não parecia possuir uma ideia concreta a transmitir, "Stella Maris" é todo o contrário, quase vazio de ação, completamente focado naquilo que tem para dizer, ainda que o faça por meio de alguém em quem não podemos confiar totalmente, pelo diagnóstico de loucura a que está votada. É uma viagem científica realizada por meio de um vertiginoso diálogo entre um terapeuta e uma paciente, 20 anos, que desistiu de fazer o seu doutoramento em matemática para se auto-internar no hospital pisquiátrico Stella Maris.

agosto 26, 2019

Como Começou a Linguagem: a História da Maior Invenção da Humanidade

Começar por dizer que não sou de Linguística, embora trabalhe no domínio da Comunicação que opera alguns níveis acima na relação com o humano, e por isso possui relação com o conhecimento produzido pela linguística. Dizer que tendemos a conhecer mais Chomsky pelo seu ativismo político do que propriamente pelos seus contributos científicos. No entanto, tendo em conta a envergadura do seu reconhecimento é sempre complicado defender posições antagónicas, contudo, é isso que Daniel L. Everett faz neste livro, “How Language Began: The Story of Humanity's Greatest Invention” (2017). Everett doutorou-se com uma tese em linguística, baseada no seu trabalho de campo com tribos da Amazónia nos anos 1970, um trabalho que continuou sempre a evoluir e lhe permitiu chegar a esta afirmação que surpreende muitos linguistas: “Eu nego aqui que a linguagem seja um instinto de qualquer tipo, assim como nego também que seja inata”.


Sendo um livro sobre a génese da linguagem humana, precisamos de partir da base comum e aceite pela generalidade dos académicos linguistas, sobre o modo como criamos linguagem e que na área dá pela designação de “Gramática Generativa” ou “Gramática Universal”. Esta designação foi criada por Chomsky nos anos 1960 e pretendia identificar um conjunto de regras base de organização mental que permitiriam o surgimento e desenvolvimento da linguagem. Chomsky e colegas determinaram que esta organização terá surgido há cerca de 50 mil anos, tendo alterado completamente o nosso desenvolvimento cognitivo e social, distinguindo-nos dos animais. Deste modo, Chomsky afirma existir uma linguagem universal inata, que mais tarde Fodor e Pinker denominariam de “linguagem do pensamento” ou “mentalese”. Confesso que a primeira vez que li sobre esta teorização não me atraiu. O meu treino em comunicação faz-me trabalhar a realidade do humano como algo altamente variável culturalmente (o que é amplamente suportado por evidências empíricas), daí que aceitar a hipótese da existência de uma espécie de código universal a este nível, imbuído em todos de forma igual, me pareceu sempre extemporâneo.

Ora o que Everett faz neste livro é exatamente desmontar essa ideia de linguagem universal. Como disse, não é o primeiro, basta fazer uma pesquisa no Google Scholar para encontrar estudos e artigos em oposição. O meu primeiro choque surgiu com a leitura de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) no qual Bergen apresenta a Hipótese da Simulação Corpórea com a qual sinto grande afinidade (não vou aqui detalhar, basta seguir o link para a discussão do livro). Mas talvez o maior choque, e só agora ao ler Everett me apercebi de tal, tenha sido com o livro de Tomasello “Origins of Human Communication” (2008), no qual o autor realiza um trabalho brilhante demonstrando o surgimento da comunicação a partir do gesto. Ou seja, a comunicação assente na expressão corporal, e na relação sistémica com o outro, e não a partir de um qualquer sistema inato interno.

Everett pega exatamente na questão dos gestos e na questão da comunicação, para demonstrar a origem evolucionária e socio-cultural da linguagem (apesar de só no final do livro sugerir a leitura de Tomasello). Não é muito difícil perceber esta posição se compreendermos a espécie-humana como formação de atores sociais altamente interdependentes. Ou seja, a linguagem, como muito daquilo que faz de nós pessoas, e não meros humanos, é emanada dessas relações, alterando-se a cada interação. Não é a universalidade que garante que comecemos a falar igual a outros sempre que passamos mais tempo com eles (ex. quando convivemos muito tempo com grupos com traços fonéticos ou dialecticais marcados, rapidamente os assumimos). Por outro lado, para além de nunca se ter detectado qualquer módulo responsável pela linguagem, nem tão pouco qualquer gene, é no mínimo estranho que a ser uma formação inata, não tenham sido também detectados até hoje nem anomalias congénitas nem qualquer hereditariedade dessas entre gerações. Aliás, nos trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos no campo da genética, (ver "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" (2018)) fala-se de traços físicos e psicológicos, vai-se ao nível da personalidade que condiciona a nossa emocionalidade, mas não vi até ao momento qualquer estudo que incluísse uma variável de linguagem. Se realmente fôssemos dotados de um qualquer módulo, por mínimo que fosse, ele teria de estar contido em qualquer parte da nossa informação genética.

Mas Everett faz um trabalho muito mais minucioso, não se fica por uma argumentação de variáveis. O facto de ter trabalhado mais de 30 anos com tribos isoladas, permitiu-lhe chegar a sistemas linguísticos não contaminados culturalmente, e encontrar diferenças relevantes. No caso da tribo Pirahã, a principal descoberta tem que ver com a ausência de recursividade, demonstrando a impossibilidade de um módulo universal. A leitura sobre a cultura da tribo é extremamente interessante, podem aceder a um pouco da mesma na página Wikipedia. A questão da ausência de recursividade é fundamental na gramática universal, porque é ela que permite a auto-sustentabilidade linguística, que por sua vez garante criatividade, evolução e claro, progresso cognitivo. Evertt, ao encontrar esta tribo sem acesso a tal modo, mas capaz de linguagem e conversação, desenvolveu toda uma nova abordagem à linguagem assente na cognição semiótica de Peirce — no seu triângulo de significação: Index, Ícone e Símbolo. Deste modo, a comunicação existiria muito antes de existir recursividade, e a linguagem faria apenas parte da comunicação como um todo.

Voltando à questão da interação social, base da grande teoria de Bandura sobre a aprendizagem, existe um vídeo na TED que coloca a nu este mesmo processo. No experimento Ded Roy montou câmaras por toda a casa que captaram todos os momentos em que o seu filho acabado de nascer expressou palavras, e conseguiu deste modo captar a progressão da criação da linguagem e o modo como ela é moldada pela interação social, no caso com os pais. É um experimento impressionante, que vale a pena ver, ou rever. O bebé começa por emitir sons básicos, mas ao apontar para o que quer expressar, recebe o feedback dos pais, que replicam com a palavra correta. Deste modo a criança aprende que se quer aquele elemento, e se apontar não chega, precisa de dizer a palavra de modo a que os outros a compreendam. Ou seja, a criança não nasce com a capacidade de linguagem, mas antes com a capacidade de aprendizagem e modulação dos sons que produz. A nossa capacidade de aprender, permite-nos refinar tudo aquilo que fazemos por meio da interação e feedback com o real.

"O Nascimento de uma Palavra" (2011) de Deb Roy

Um outro ponto altamente problemático da teoria de Chomsky é a pragmática da comunicação, e que só pode ser ignorada por quem se foca exclusivamente na lógica matemática do social. Se a linguagem humana é sustentada numa sintaxe inata, de onde surge a semântica e a pragmática? Porque repare-se que a sintaxe nada vale para o ser humano sem semântica, e de nada serve na comunicação sem pragmática. E podemos ir mais fundo, como é que poderíamos defender a existência de um mentalese sem a existência de qualquer quadro de referência de significado. Ou seja, a que corresponde cada signo da mentalese, como é que o sistema atribui valor aos signos?

Claro que também tenho problemas com a proposta de Everett, nomeadamente com a sua proposta de que a linguagem terá começado há mais de 1 milhão de anos. A razão é simples, as evidências que temos de evolução da espécie em termos cognitivos, nomeadamente por meio de registos materiais — principalmente escultura e pintura — datam de há apenas 200 mill a 40 mil anos. Ou seja, algo aconteceu com a nossa espécie nessa altura para que esta tivesse começado a expressar e a criar. E repare-se que a linguagem é o primeiro ato criativo, já que depende da constante mescla e associação de palavras, e claro das ideias. Neste sentido, poderia dar-se razão a Chomsky. Pode ter acontecido uma mutação cognitiva no humano que o conduziu à produção de sintaxe, a mescla de sons e formação de palavras, que por sua vez tenhamos conseguido operar de forma mais evoluída pela semântica e pragmática.

A Caverna de Altamira, Espanha, apresenta algumas das primeiras pinturas humanas, tendo sido datadas com 30 mil anos.

Ainda assim, Everett toca num ponto que coloca em oposição e que me é particularmente caro, a conversação. Everett sugere que a evolução terá ocorrido a partir desta e não da gramática, o que para mim faz pleno sentido. A conversação é o sistema cognitivo social mais evoluído que alguma vez desenvolvemos. Não se trata da mera produção de sons, ou encadeamento e mescla de sons, mas envolve toda a nossa capacidade cognitiva — incluindo memória, percepção, atenção, aprendizagem, raciocínio, empatia, etc. Mas tal não invalida que algo aconteceu há 50 mil anos, e aqui discordo de Everett que defende que não houve qualquer alteração que foi tudo apenas resultado da mera progressão. É verdade que Everett sustenta no caso empírico da tribo Pirahã, que é uma tribo que vive apenas no presente, para quem não existe passado nem futuro, não produzem registos, nem possuem identificadores de número. Para Everett os Pirahã demonstram que se pode estar num estado anterior e ser dotado de linguagem, ou seja, sem qualquer salto cognitivo ou mutação. Mas também podemos questionar-nos se não é esta tribo uma anomalia, já que tal não foi encontrado em mais nenhum outra comunidade.

Pareço dar o dito pelo não dito, mas a grande questão, olhando às propostas de Everett e Chomsky, prende-se com uma diferença de ênfase. Ou seja, Chomsky tem razão sobre algo ter acontecido no nosso aparelho cognitivo, da ordem da linguagem ou outra qualquer. Tal como Everett tem razão ao dizer que não existe qualquer linguagem universal do pensamento, ou módulo cerebral. Podemos pensar então que existe algo que predispõe a espécie humana à linguagem, algo que surgiu apenas nos últimos 100 a 200 mil anos, não sabendo nós explicar o quê, nem como sucedeu. Na verdade, nada disso nos deve surpreender, a linguagem faz parte da nossa capacidade de produzir consciência, que ainda hoje temos dificuldade em definir, para não falar em compreender como terá surgido, ou sequer como se forma.


Atualização: 27 agosto 2019
Em 2009, numa entrevista com o Folha de S. Paulo, Chomsky dizia sobre  Everett: "Ele virou um charlatão puro, embora costumasse ser um bom linguista descritivo. É por isso que, até onde eu sei, todos os linguistas sérios que trabalham com línguas brasileiras ignoram-no". Esta reação é ridícula, porque passa a ideia de que Everett é o único cientista que não acredita na Gramática Universal de Chomsky. Deixo um artigo de Evans e Levinson sobre os Mitos das Linguagens Universais.

dezembro 30, 2017

Blade Runner 2049 (2017)

Foi uma das sequelas anunciadas que mais me incomodou. Não fazia sentido, não era necessária. Nem mesmo um remake já que “Blade Runner” (1982) consegue o extraordinário feito de se manter, no campo audiovisual, para não falar das ideias, completamente atual. Por isso e apesar de ir lendo boas impressões, não me aproximei inicialmente do filme. Agora que o vi, não quero deixar de agradecer a todos os que lhe deram “corpo”, desde o empenho de Ridley Scott na promoção do projeto e enquanto Produtor Executivo, à mestria de Denis Villeneuve (realização), Hampton Fancher (história), Benjamin Wallfisch (música), Roger Deakins (cinematografia), Joe Walker (montagem), Paul Inglis (arte) e tantos outros responsáveis, por muitas outras partes — desde o design de som, efeitos visuais, decoração, cenários, props, e maquilhagem ao guarda-roupa. Deixo os atores de fora? Não, mas o filme é tanto mais, e é sempre deles que se fala.




Em termos puramente experienciais, “Blade Runner 2049” marca o ano juntamente com “Dunkirk” (2017), muito graças às extraordinárias equipas criativas que foram capazes de levar ambos os projetos à pureza da perfeição audiovisual, nas diversas necessidades que compõem uma obra cinematográfica. Já no campo das ideias e do discurso “Blade Runner 2049” afirma-se e destaca-se. Socorre-se de um minimalismo expressivo, que claramente não lhe poderia granjear grande sucesso de bilheteira, mas sem isso teria sido apenas mais um filme sobre andróides. O que tem para dizer é impactante, porque muito hábil na relação empática, o que torna inevitável recordar o universo de “Children of Men” (2006). Assim, e continuando profundamente distópico, existe algo de muito distinto neste segundo filme, uma centelha de esperança!


Como pergunta Jorge Martins Rosa, especialista em Philip K. Dick (PKD), será esta ainda uma obra dickiana? Sim e não, exatamente pelo que disse acima, porque a distopia ganha aqui asas de utopia, algo longe do mundo dickiano. Apesar desta ligeira discordância, recomendo a leitura do texto do Jorge a quem quiser ganhar acesso às múltiplas camadas enterradas por debaixo da superfície plástica do filme. Mais ainda porque concordo com a essência do texto ao definir como pergunta central do filme, imbuída da visão dickiana: “O que é o humano?”

Concordo com esta definição, não apenas por partir de PKD, mas porque passei todo o filme a questionar-me sobre isso. Não, não foi a questionar quem de entre os personagens era humano e quem era replicant, essa questão para mim ficou lá atrás, em 1982. A minha questão foi perceber se em 2049 ainda existiam humanos, daí a colagem “Children of Men” ganhar toda uma enorme relevância, pela antecipação de um futuro anunciado em “AI: Artificial Intelligence” (2001). Mas esse futuro é em “Blade Runner 2049” assumido de modo muito distinto, o qual já qualifiquei acima de utópico, mas tem o seu quê de distópico, já que tudo o que parece mover aqueles que nos sucederão, é ser-se humano! Foi aqui que a história me perdeu, em parte, fez-me descolar da fantasia, porque foi longe demais, não no feito, mas no sentido desse feito, porque em essência me pareceram efeitos dos resquícios de criador, ou talvez melhor, chamar-lhe colonizador (porque não apenas cria como condiciona a cultura).


Existe tanto por onde pegar em “Blade Runner 2049”, o seu minimalismo ajuda, mas é difícil fazê-lo e manter o texto livre de spoilers. Contudo, passados vários filmes e livros sobre este tema, sinto que algo se vai esgotando na temática, porque atingimos uma espécie de fronteira do conhecimento sobre nós mesmos, não falo pela mera separação entre humano e máquina, mas antes pelo que aponta como marca do nosso devir, porque ganhámos a noção de que chegará o momento em que passaremos o testemunho. Sim, existe aqui um piscar de olhos a um caminho alternativo, ainda que muito breve, apresentado em "Prometheus" (2012), talvez porque Scott também tenha batido contra esta parede. E por isso, talvez seja eu agora quem termina este texto num tom distópico, talvez por homenagem ao dickiano que há em mim, contudo olho para esse momento como parte de algo maior que nós, e por isso mais utópico que distópico.

maio 31, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume VI

E ao sexto volume senti a força do romance irromper por entre todo aquele manto constituído por camadas e camadas de análise e auto-análise. Proust surpreende-nos, mas se me surpreendi com a reviravolta no enredo, mais ainda me surpreendi, por só agora me ter apercebido de um traço central em toda a escrita da ‘Recherche’, a tentativa deliberada para evitar a emoção estética. Proust cita por duas vezes Descartes ao longo da obra, mas só aqui me dei conta do quão contaminado por ele estava Proust, buscando aqui claramente realizar um trabalho de análise da vida, cingindo-se apenas, e só (pelo menos assim o desejava ele), à razão.


Ou seja, seguindo a crença no dualismo cartesiano, Proust trabalha com enorme profundidade a descrição de cada ação, evento e novo facto, evitando por todos os meios contaminar as suas descrições com sentimento, acreditando que a razão é a base da consciência, do conhecimento. Isto tornou-se-me mais claro aqui, porque ao fim de todos estes volumes a reviravolta que acontece é forte, intensa, mas Proust apesar de dar conta dela, fá-lo sem se dar aos sentires do seu personagem que facilmente poderiam resvalar para uma emocionalidade excruciante. Toda a emocionalidade é analisada e descrita num detalhe tal, tornando-se em si explicação, desprovida de sensação. Claro que tudo isto é impossível, não é possível escrever de forma apenas racional, porque enquanto seres humanos, somos incapazes de racionalizar sem emoção (Damásio).

Deste modo o que acaba por acontecer em Proust, é que ele nos arrebata sim, mas pela forma brilhante como escreve e analisa, e menos, ou mesmo nada, pela forma como recria experiências emocionais. As experiências emocionais estão lá, mas ele não as recria para que nós as experiencemos, ele abre todo um acesso especial à experiência profundamente racional. Proust procurava assim a elevação discursiva, ele sabia que era fácil agarrar o leitor pela emocionalidade, pela força do enredo, pelas suas reviravoltas amorosas, mas não era isso que o movia, ele estava mais interessado em dar a conhecer o mundo nas suas essências constituintes, porque muito provavelmente acreditava estar aí o cerne da consciência, da nossa capacidade para apreender o mundo.

Entrando na questão da consciência, neste volume Proust trabalha uma nova abordagem desta, defendendo a existência de diversos 'Eu's, consoante o momento, a memória, ou a resposta necessária à realidade. Fez-me lembrar os “subselves” do recente livro “Rational Animal” de Kenrick e Griskevicius, que defendem, tal como Proust aqui defende, que somos várias pessoas diferentes, e assumimos identidades distintas em função das necessidades do real circundante. A este mesmo ponto vem agora ligar-se um outro conceito muito importante para Proust, o “hábito”, como o fundamento social que suporta, tal concha protectora, cada um dos nossos Eus. Pois em função de cada necessidade social, automaticamente reportamos ao hábito, e desse ao Eu que necessitamos para reagir.
Assim decorria na nossa sala de jantar, à luz do candeeiro que tanto as estimula, uma daquelas conversas a que a sabedoria, não a das nações, mas a das famílias, apoderando-se de um acontecimento qualquer - morte, noivado, herança, ruína - e colocando-o sob a lente de aumentar da memória, confere todo o seu relevo, um relevo que dissocia, recua e situa em perspectiva em diversos pontos do espaço do tempo aquilo que, para os que não viveram, parece amalgamado numa mesma superfície: os nomes dos falecidos, os sucessivos endereços, as origens da fortuna e as suas alterações, as mutações de propriedade. Esta sabedoria é inspirada pela Musa que convém ignorar durante tanto tempo quanto possível se quisermos conservar alguma frescura de impressões (..) a Musa que recolheu tudo o que as musas mais elevadas da Filosofia e da Arte rejeitaram, tudo o que não está assente em verdade, tudo que é apenas contigente mas igualmente revela outras leis: a História!” p. 264
Este é o volume mais pequeno, todos os outros aquando do lançamento foram editados em 2 ou 3 volumes (15), este foi o único que foi lançado num único apenas. Tem a particularidade, tal como o anterior, de ter saído depois da morte de Proust, e não ter tido a sua revisão final, o que por vezes se nota, embora se sinta mais no volume anterior. Como livro, a primeira e a última parte são novamente as mais intensas, embora pela primeira vez Proust não deixe um gancho final. Não sinto que faça falta, estamos no penúltimo volume, e o texto que encerra o livro, está claramente a apontar para o encerramento da narrativa, de modo que a ânsia por passar ao volume seguinte é mais forte que nunca, queremos saber o que ainda nos reserva um volume inteiro, uma vez que o climax parece ter já surgido aqui, e os Lados, de Guermantes e de Swann, foram completamente unidos.


[Marcel Proust, (1925), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume VI - A Fugitiva”, Relógio D'Água, ISBN 9727088023, trad. Pedro Tamen, 2004, p. 288]

Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

maio 19, 2015

Consciência, Multimedia e Inteligência Artificial

Consciousness and the Brain: Deciphering How the Brain Codes Our Thoughts” (2014) de Stanislas Dehaene oferece-nos um excelente trabalho de divulgação da investigação científica que se tem realizado nas últimas décadas à volta do conceito de 'consciência'. A abordagem escolhida por Dehaene é a de simplificar o domínio, libertando dos tabus a que a área foi votada pelos próprios investigadores. O domínio dos estudos da consciência foi sempre bastante frágil, à semelhança do estudo das emoções, por ser considerado não apenas complexo, mas impossível de vergar ao método experimental. Desta forma este livro de Dehaene funciona quase como uma lufada de ar fresco na desmistificação e facilitação de acesso àquilo que designamos de consciência.


Dividiria o livro em três grandes partes, a introdução ao conceito e sua sustenção evolucionária, que ocupam os primeiros capítulos, simples e cheios de metáforas que se percebem muito bem, e que nos garantem uma noção bastante concreta do que é a consciência. A segunda parte, um pouco mais densa, nomeadamente por se procurar sustentar as ideias com muitos estudos realizados no campo e que acabam dedicando demasiado tempo a tecnicismos do cérebro, perdendo por vezes a nossa atenção. E depois o capítulo final no qual se aponta ao futuro da área, com dados e especulações extremamente instigantes. Deste modo quero deixar apenas algumas notas sobre a definição do conceito, e depois dedicar algumas linhas à projecção para estudos futuros.

Comecemos pela definição de consciência que Dehaene apresenta :
“consciousness is brain-wide information sharing. The human brain has developed efficient long-distance networks, particularly in the prefrontal cortex, to select relevant information and disseminate it throughout the brain. Consciousness is an evolved device that allows us to attend to a piece of information and keep it active within this broadcasting system. Once the information is conscious, it can be flexibly routed to other areas according to our current goals. Thus we can name it, evaluate it, memorize it, or use it to plan the future.” (abertura do Capítulo 5)
Isto levaria-nos a questionar de que serve então a consciência, porque não funcionamos apenas por meio de processos não-conscientes? E é nesse sentido que se torna interessante analisar o processo em termos evolucionários, que Dehaene define assim:
“consciousness supports a number of specific operations that cannot unfold unconsciously. Subliminal information is evanescent, but conscious information is stable — we can hang on to it for as long as we wish. Consciousness also compresses the incoming information, reducing an immense stream of sense data to a small set of carefully selected bite-size symbols. The sampled information can then be routed to another processing stage, allowing us to perform carefully controlled chains of operations, much like a serial computer. This broadcasting function of consciousness is essential. In humans, it is greatly enhanced by language, which lets us distribute our conscious thoughts across the social network.”
Isto é um processo que me interessa particularmente, porque o conceito de hipertexto é fundamentalmente baseado no mesmo. Se Vannevar Bush procurava emular a nossa capacidade de pensamento associativo, ou seja de processamento de múltipla informação, em paralelo, que ocorre no não-consciente, fundamental em termos de agilidade cognitiva, pelo meio ficou esquecido o problema do consciente, ou seja, o modo como filtramos a informação do exterior, como consolidamos a informação e a transportamos para o não-consciente, via processos em série. Este problema agravar-se-ia depois ainda mais com o surgimento do hipermedia/multimedia, em que os documentos passavam não apenas a apresentar diversidade não-linear de informação, mas modelada por meios distintos.

Por isso aceder a um documento multimedia, em que o conteúdo que se pretende transmitir, é espartilhado em vários objectos distintos de media a tempos não-lineares, torna a compreensão mais difícil do que aceder a um documento linear e num único meio. A ideia de que os objectos distintos se reforçam mutuamente acaba por não funcionar já que os múltiplos meios obrigam de imediato a um consumo maior de consciência. Usando linguagem informática, poderemos descrever o processo da seguinte forma: quanto mais meios distintos utilizar numa mensagem, mais software tenho de fazer o receptor carregar para o consciente, para conseguir descodificar cada meio, sobrando menos capacidade para descodificar a essência do que se quer comunicar. Ou seja, não lemos um texto, uma foto, um vídeo ou sons da mesma forma, precisamos de usar recursos apreendidos em experiências anteriores, para descodificar cada um desses sinais. Nesse sentido - um texto, ou um vídeo, ou um áudio - permitem ao receptor concentrar-se quase exclusivamente na mensagem, assumindo o meio quase como transparente.


Daí que o enfoque comunicativo do multimédia não possa ser a multimedialidade mas antes a interatividade, como tenho defendido ("Media Criativos e Interactivos" (2010), Jornalismo 'Interactive Storytelling'? (2015)). Porque aquilo que diferencia os novos media dos tradicionais é apenas, e só, a interatividade, já que a união de diferentes media vem desde os anos 1930 sendo feita pelo cinema. E quando falo de interatividade, não falo de um processo aberto, ou rizomático, de acesso a múltiplas fontes de informação, mas antes de um processo cíclico de interacção - conversacional - entre o artefacto e o receptor. Daí que pensar, desenhar e construir um artefacto a partir do seu potencial de interatividade, seja totalmente distinto de o fazer a partir do potencial de junção de diferentes media.


No último capítulo são várias as questões e desafios apresentados para os quais ainda não temos respostas, e que se revelam de enorme importância, das quais escolho aqui discutir duas:

1: "Can we figure out whether a monkey, or a dog, or a dolphin is conscious of its surroundings?"

Neste ponto Dehaene discute os vários estágios do conhecimento científico porque passámos em termos do que separa o homem dos animais, sendo que no mais recente estágio se assumia que o que determinava esta diferença estava na capacidade do homem poder reflectir sobre si mesmo, algo que nos estudos mais recentes se tem demonstrado, com grande evidência, que vários animais são também capazes de fazer, ou seja, os animais possuem consciência. Deste modo Dehaene procura elaborar uma ideia que demonstre a linha que nos separa dos animais, e fá-lo usando uma abordagem cognitiva assente nos processos de linguagem, com a qual concordo inteiramente:
“although we share most if not all of our core brain systems with other animal species, the human brain may be unique in its ability to combine them using a sophisticated “language of thought.” René Descartes was certainly right about one thing: only Homo sapiens “use[s] words or other signs by composing them, as we do to declare our thoughts to others.” This capacity to compose our thoughts may be the crucial ingredient that boosts our inner thoughts. Human uniqueness resides in the peculiar way we explicitly formulate our ideas using nested or recursive structures of symbols (..) in agreement with Noam Chomsky, language evolved as a representational device rather than a communication system—the main advantage that it confers is the capacity to think new ideas, over and above the ability to share them with others. Our brain seems to have a special knack for assigning symbols to any mental representation and for entering these symbols into entire novel combinations (..) The recursive function of human language may serve as a vehicle for complex nested thoughts that remain inaccessible to other species. Without the syntax of language, it is unclear that we could even entertain nested conscious thoughts such as He thinks that I do not know that he lies. Such thoughts seem to be vastly beyond the competence of our primate cousins.”
2: "Could we ever duplicate them in a computer, thus giving rise to artificial consciousness?”

Para o o final Dehaene deixa um assunto, semelhante ao do ponto anterior, mas numa direcção diferente. Se no caso dos animais, estamos focados em tentar perceber o que nos coloca em planos diferentes, no caso da Inteligência Artificial, estamos interessados em perceber se será verdadeiramente possível criar um processo matemático que simule a consciência. Um tópico que me tem preocupado nos últimos anos, por causa da minha investigação na área de emoções, e que discuti aqui já a propósito de um livro de Oliver Sacks e de uma talk de António Damásio.
“I have no problem imagining an artificial device capable of willfully deciding on its course of action. Even if our brain architecture were fully deterministic, as a computer simulation might be, it would still be legitimate to say that it exercises a form of free will. Whenever a neuronal architecture exhibits autonomy and deliberation, we are right in calling it “a free mind” — and once we reverse-engineer it, we will learn to mimic it in artificial machines (..) Our neuronal states ceaselessly fluctuate in a partially autonomous manner, creating an inner world of personal thoughts. Even when confronted with identical sensory inputs, they react differently depending on our mood, goals, and memories. Our conscious neuronal codes also vary from brain to brain. Although we all share the same overall inventory of neurons coding for color, shape, or movement, their detailed organization results from a long developmental process that sculpts each of our brains differently, ceaselessly selecting and eliminating synapses to create our unique personalities. The neuronal code that results from this crossing of genetic rules, past experiences, and chance encounters is unique to each moment and to each person. Its immense number of states creates a rich world of inner representations, linked to the environment but not imposed by it. Subjective feelings of pain, beauty, lust, or regret correspond to stable neuronal attractors in this dynamic landscape. They are inherently subjective, because the dynamics of the brain embed its present inputs into a tapestry of past memories and future goals, thus adding a layer of personal experience to raw sensory inputs. What emerges is a “remembered present,” a personalized cipher of the here and now, thickened with lingering memories and anticipated forecasts, and constantly projecting a first-person perspective on its environment: a conscious inner world.”

Ler mais:
A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma 
Musicophilia (2007), música e consciência

abril 30, 2014

"The Self Illusion: How the Social Brain Creates Identity"

Bruce Hood, professor de psicologia da Universidade de Bristol, traz-nos uma discussão profundamente filosófica, e tão antiga como a nossa consciência, na qual se discute “o que somos, de que é feito “aquilo” a que chamamos EU?”. Hood trabalha essa discussão a partir das mais recentes descobertas da neurociência e psicologia. Apesar da abordagem ser feita pelo lado interno do ser humano, das pesquisas sobre o funcionamento do cérebro, “The Self Illusion: How the Social Brain Creates Identity” (2012) acaba por apresentar a sua proposta fundamentada no reconhecimento da relevância do social, como indica o próprio sub-título.

The Self Illusion: How the Social Brain Creates Identity” (2012)

Sobre o livro em si, dizer que pode ser muito interessante para quem não acompanha a área dos estudos da psicologia, psicologia social ou neuropsicologia, mas para quem segue o assunto, o livro pode tornar-se algo aborrecido, já que grande parte dos exemplos e estudos apresentados foram já amplamente debatidos por muitos outros autores. Hood faz uma resenha ao longo de todo o livro dos estudos mais importantes na área para suportar a ideia central e conclusiva do seu livro. Nesse sentido, o melhor do livro acaba sendo o início do capítulo “Why Our Choices Are Not Our Own e todo o último capítulo, “Why You Can’t See Your Self in Reflection” de síntese das ideias e conclusões. Desta forma, podemos dizer que temos material para um paper longo, digamos de 20 a 30 páginas, mas não temos propriamente material para um livro, a não ser que queiramos encarar o mesmo como uma introdução à área.

Na verdade as conclusões de Hood não são novas, muito do que é aqui dito pode ser encontrado anteriormente em Platão (Filósofo), Espinoza (Filósofo), William James (Psicólogo), Erwin Goffman (Sociólogo), Douglas Hofstadter (Físico) ou mesmo Philip K. Dick (autor de ficção científica). A diferença é que Hood apresenta fundamento científico para suportar as suas afirmações. Anteriormente tínhamos especulação filosófica sobre o modo como funcionamos, hoje podemos ter um pouco mais de certezas sobre os processos, porque temos mais evidência empírica. Por outro lado Hood não se fica pelas evidências, e avança por questões profundamente filosóficas adentro, trazendo para o centro da mesa a problemática do determinismo, discutindo-o nos fundamentos que suportam o EU, incorrendo nos mesmos problemas dos autores anteriores, a ausência de evidência. Aliás, por isso se diferencia totalmente do trabalho de Damásio no campo da consciência, já que este limita o seu discurso ao que é demonstrável. Damásio apresenta as suas dúvidas, e deixa as questões para quem quiser continuar a investigar, enquanto Hood se deixa levar pela ânsia de dar respostas.

Indo directo a esta diferença com Damásio, Hood não se limita a declarar que o nosso EU é uma ilusão porque construída na base das experiências sociais vividas. A partir desta constatação Hood afirma que na verdade não existimos enquanto EU, porque somos e fazemos apenas aquilo que o sistema em que estamos inseridos nos permite. Ou seja, Hood assume uma perspectiva do mundo determinista, e esquece por completo o que dá origem ao processo de consciência. Mas na verdade, como Damásio afirma no seu último livro, continuamos a não saber o que produz o processo de consciência em nós. A única coisa que sabemos é que “somos feitos” de frágeis memórias, vividas, sentidas e experienciadas, nada somos sem elas. Por isso nos choca tanto doenças como o Alzheimer, quando estas atacam, o nosso corpo continua vivo, mas o nosso EU desaparece. Ou seja, sabendo que não existe nenhum fantasma, alma ou homunculus dentro de cada um de nós, falta-nos perceber como damos sentido a um amontoado de memórias, representações mentais feitas de imagem, som, cheiro e textura. Damásio diz-nos que somos feitos de um fluxo autobiográfico, mas falta perceber como se forma este fluxo, no fundo como emerge a consciência.

Dizer que somos aquilo que o universo nos permite, que fazemos apenas aquilo que as nossas experiências nos permitem, é dar um salto nas etapas de análise do problema. Porque se não sei como emerge a consciência, torna-se muito complicado afirmar que esta simplesmente faz o que lhe é permitido. É verdade que de um ponto de vista determinista, tudo aquilo que fazemos é fruto de condições anteriores, a grande questão que se coloca, é quem para além de nós pode conhecer certas condições anteriores, se não apenas a nossa consciência. Por isso é que só ela pode tomar certas decisões, ainda que saibamos que estas dependem de um conjunto de pressupostos que a condicionam.

Seguindo ainda nesta discussão entre Damásio e Hood discordo completamente das assunções que Hood retira do “experimento do botão” e da sua relação com o livre-arbítrio. Deixo um resumo do experimento, retirado do livro,
“Imagine that I ask you to push a button whenever you feel like it. Just wait until you feel good and ready. In other words, the choice of when you want to do it is entirely up to you. After some time, you make the decision that you are going to push the button, and low and behold you do so. What could be more obvious as an example of free will?…

Of course, in making a decision, we also experience a conscious intention or free will to initiate the act of pushing the button about a fifth of a second before we actually begin to press the button. But here’s the spooky thing. Libet demonstrated that there was a mismatch between when the readiness potential began and the point when the individual experienced the conscious intention to push the button…

Libet established that adults felt the urge to push the button a full half second after the readiness potential had already been triggered. In other words, the brain activity was already preparing to the press the button before the subject was aware of his own conscious decision…

One might argue that half a second is hardly a long time but, more recently, researchers using brain imaging have been able to push this boundary back to 7 seconds. They can predict on the basis of brain activity which of two buttons a subject will eventually press. This is shocking.”
Isto na verdade não apresenta nada de chocante, pelo menos em 2010, depois de tudo o que já descobrimos sobre a ausência de qualquer dualidade mente/corpo. Damásio foi o primeiro a colocar o dedo na ferida, mas depois dele muitos outros o corroboraram. Não existe EU etéreo, o EU é feito de memórias vividas, mas essas estão registadas no nosso corpo. Para além da questão corpo/mente, temos ainda a questão do consciente e não consciente. Sabemos que o nosso córtex pré-frontal mantém acessível à consciência apenas excertos de tudo aquilo que está espalhado pelo nosso cérebro e corpo, e ainda bem, não conseguiríamos lidar com tanta informação simultaneamente. Deste modo é natural que o processo de tomada de decisão de apertar o botão ocorra bastante antes de eu ter a consciência clara de que o desejo fazer, porque antes disso, ocorre todo um processo interno de acesso a memórias espalhadas pelo cérebro, e emoções espalhadas pelas nossas vísceras. A decisão forma-se no corpo, o não consciente ganha ideia de que o deve fazer, e só depois o consciente recebe a informação para avançar, já depois dos músculos do dedo a terem recebido.

Dizer que isto configura ausência de livre-arbítrio é no mínimo estranho. Segundo Hood isto incomoda-nos porque “We want to believe that we are more than fleshy computing devices that have evolved to replicate. We are not simply meat machines.”. Pois é verdade que as pessoas desejam isso, a religião é a maior prova desse desejo, mas a ciência tem feito o seu caminho e demonstrado que é apenas isso que somos, máquinas biológicas. Máquinas que operam condicionadas pela sua própria forma, assim como pela forma do sistema em que estão inseridas. O livre-arbítrio é reduzido, e no fundo podemos apenas dizer que ele se limita ao nosso pensamento, mas existe, ele representa aquilo que chamamos de consciência, o problema é que não percebemos ainda o que é no fundo a consciência.


Links de interesse
A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma, in Virtual Illusion

outubro 24, 2013

Literatura Histérica

"Histerical Literature" (2012) de Clayton Cubitt é um trabalho de videoarte absolutamente fascinante. Eu diria que é uma intervenção artística com um potencial de leitura enorme, e que me interessou particularmente pelo que representa em termos das noções científicas de corpo, razão, emoção e consciência. Aliás o próprio nome dado à obra aparece intimamente ligado a um fenómeno médico, da época vitoriana, designado por Histeria Feminina.


Ver cada uma destas mulheres a realizar um esforço de golias para continuar a ler enquanto os seus corpos vibram e as hormonas do prazer procuram tomar conta de toda a esfera consciente, é extremamente impactante no que toca ao conhecimento de nós próprios. Cada uma das sessões coloca em evidência a nossa total incapacidade de controlo do corpo pela mente, e como o corpo consegue literalmente dirigir a nossa mente, subjugando-a às suas necessidades. Por breves momentos os corpos humanos parecem ali totalmente imbuídos de arbítrio próprio, incapazes de obedecer às ordens da mente, gesticulando através de espasmos e reações não planeadas. Dei-me conta entretanto que esta descrição que acabo de fazer, era a descrição usada para definir a pseudo-doença Histeria Feminina.

Noutros tempos diríamos que a emoção toma de assalto a razão, manietando-a e assumindo o total controlo da mente. Mas no século XXI este discurso é pouco correto, e diga-se que o novo conhecimento torna tudo isto ainda mais fascinante. Deste modo o que podemos ver aqui, são os processos não-conscientes que regulam o corpo e possuem acesso direto à nossa imaginação, a assumirem o controlo dos processos conscientes responsáveis por nos garantir o conhecimento da realidade que nos circunda a todo o momento. Ou melhor, assistimos a um desligar da consciência, uma espécie de blackout momentâneo, ou hi-jack, que assim impede o sujeito de continuar a atuar sobre as tarefas que estava a realizar.

Outra questão que se nos pode levantar ao ver estas sessões, é sobre o automatismo ou maquinismo do ser humano. A ideia de que o prazer sexual é ativado por meio de um mero botão físico! Como se não passássemos de marionetas, que podem ser controladas a partir desse tal botão apenas. Ora tudo isto seria assim, se desligássemos a emoção da razão. Mas a verdade, é que todo o processo do orgasmo é feito na maior intimidade entre mente e corpo. Na verdade o corpo não está sozinho no processo, mas entra antes num processo de pura simbiose com os processos mentais das áreas não-conscientes, criando assim as condições necessárias para que o processo atinja o seu objetivo final.

E é exatamente por toda esta ativação da imaginação que o orgasmo é tão importante. O orgasmo está longe de ser uma mera descarga de hormonas que dura breves segundos, mas antes atua sobre todo o nosso universo interior imaginativo. Julgo que esta performance para além de tudo o que disse acima, procura também colocar a sociedade a discutir o orgasmo feminino. Procura tornar a sociedade mais consciente do prazer sexual feminino.


Esteticamente o trabalho de Clayton Cubitt é perfeito. O minimalismo impera na imagem, vemos apenas a pessoa da cintura para cima, fora de plano encontra-se uma assistente que manuseia um vibrador. Por detrás tudo está escuro, e a fotografia opera sob um forte contraste preto e branco. Assim em cada vídeo somos levados a focar-nos completamente sobre a pessoa aí representada, não existindo dispersão com acessórios. Por outro lado o facto de se ter pedido às mulheres que assumissem o máximo de controlo da postura, impede que surjam imagens de pura lascívia que levaria toda a discussão em redor desta obra para outro campo. Aliás nesse sentido compare-se o que temos aqui com os cartazes de Nymphomaniac (2013) de Lars Von Trier.

Deixo-vos com a primeira sessão protagonizada por Stoya. Para ver as restantes e ler mais sobre a obra visite o site do trabalho.


"I hold out as long as I can. This section of the world that I’m inhabiting slows down, zooms in. Like a stretched rubber band it suddenly contracts, and I am lovingly punched with an orgasm…" Stoya


junho 08, 2013

ShotsOfAwe #02: "Singularidade"

O novo "philosophical shot of espresso" de Jason Silva já chegou. Depois do primeiro episódio dedicao ao Awe (espanto), desta vez fala-nos da Singularidade. Mais uma vez Jason é fantástico, em apenas dois minutos consegue um verdadeiro efeito de arrebatamento do espectador. Um conceito de difícil definição e que levanta vários problemas morais, é explicado em dois minutos de imagens, sons e oralidade.



Para este tópico Jason convoca trabalhos como The Denial of Death (1973) de Ernest Becker, TechGnosis (1998) de Erik Davies, e The Singularity is Near (2005) de Ray Kurzweil. Jason vai para além do medo que a questão nos coloca, de nos podermos vir a encontrar face a um outro ser criado por nós, e coloca a ênfase na descoberta, na ausência de limites do ser humano, na vontade de escapar à nossa própria morte.
"desire to transcend our own limits... desire to escape the death sentence… the singularity has a mean that reflects this sort of acceleration of the human design process, to the point of achieving an infinite velocity… we're the frontal lobes of the universe, we're the eyes and hears of the universe… our desire to transcend any of previous limits… I don't think there's anything unnatural about that… the idea of singularity is awesome"

Singularity (2013) de Jason Silva

janeiro 22, 2013

A mente como autobiografia

Fiquei um pouco desapontado com Self Comes to Mind. Damásio é um cientista brilhante e bom comunicador, mas aqui repete-se. Se já leram seus livros anteriores, principalmente O Erro de Descartes e O Sentimento de Si, vão sentir que se avança muito pouco. Se quiserem ficar por dentro do pensamento de Damásio e de uma forma brilhante, aconselho antes a sua TED talk do ano passado. Naqueles 18 minutos estão condensados todos os avanços teóricos que ele desenvolveu sobre a consciência ao longo dos últimos 15 anos.


Em Self Comes to Mind Damásio desenvolve um modelo da experiência da consciência que assenta numa ideia de consciência autobiográfica constituída por todas as nossas memórias somaticamente marcadas, que nos permitem recordar o passado e projectar o futuro. Algo em que tenho vindo a reflectir também nomeadamente quando pensamos nos efeitos do Alzheimer e que aqui falei a propósito do livro Ainda Alice de Lisa Genova. Apesar de interessante, o livro apresenta o clássico problema dos livros académicos, que julgo que ele tinha superado em parte ao longo dos seus livros, que é a quantidade de detalhe técnico. Não é mau pelo detalhe em si, mas porque se repete, e passamos folhas atrás de folhas a ler detalhes neuro-técnicos que nada acrescentam às conceptualizções teóricas.

Quando este livro foi lançado Damásio fez uma série de sete vídeos que explicam os conceitos gerais por detrás do livro. Podem ver todos no YouTube, desses escolhi para deixar aqui, aquele que para mim é o centro conceptual deste livro What Qualities Define the Self?



Links de interesse
A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma, in Virtual Illusion

fevereiro 12, 2012

A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma

Damásio na sua TED Talk, The Quest to Understand Consciousness, falou sobre o seu assunto de sempre, a criação da consciência. Tem trabalhado desde sempre sobre esta, numa tentativa de tentar perceber como se cria, como emerge a consciência. Nesta talk vai sem dúvida mais longe no desvendar desse mistério, derrubando cada vez mais os misticismos criados por milénios e milénios de filosofia e teologia. Este é um assunto complexo mas que a neurociência vem trabalhando em pequenos passos, ajudando a simplificar. Ainda não há muito tempo tinha falado aqui sobre a germinação da consciência a propósito do livro Musicophilia (2007) de Oliver Sacks.

António Damásio

Assim Damásio começa por definir a consciência, como aquilo que nós perdemos quando entramos num sono profundo sem sonhos, ou quando estamos sob o efeito de anestesia, e que recuperamos quando saimos desses estados. Isto que recuperamos, Damásio divide em dois elementos
  1. a Mente, um fluxo de imagens mentais
  2. o Eu, percepção das imagens mentais

Visualização tridimensional dos fluxos de informação no cérebro

E diz-nos, que a consciência, é a Mente com um Eu dentro. Ou seja, o Eu introduz na mente, nas imagens mentais, uma perspectiva subjectiva. Assim nós só estamos completamente conscientes quando o Eu, volta à Mente. O Eu é o responsável por nos manter enquanto pessoa, reconhecível por nós e pelos outros. É o garante do fluxo contínuo das nossas acções, de que nos recordamos do que fomos ontem, do que somos hoje, e do que queremos ser amanhã.

A Soul in Heaven (1878) de William Bouguereau

A grande questão aqui, é como é que se constrói este Eu? E isso é o que milhares de anos a matutar nos levou a pensar que poderia ser algo imaterial externo, perdurável para lá do corpo, uma alma. Mas se ouvirmos Damásio explicar como é que as imagens mentais se interligam para criar a Mente, começamos a suspeitar que a resposta da alma, pouco tem que ver com isto. Assim aqui fica o modo como Damásio vê o Eu a construir-se,
"Nós geramos mapas cerebrais do interior do corpo, e utilizamos esses mapas como referência para todos os outros mapas (mente)" 
Simples. É verdade, funciona como uma Grande Estrutura distribuída pelos neurónios do nosso cérebro, e que foram e vão sendo criadas a partir das respostas do nosso corpo como um todo.  E porque é que isto faz mais sentido que uma Alma? Na minha opinião porque simplesmente, quando uma qualquer zona do nosso cérebro é afetada, perdemos o controlo das partes do corpo que estavam anteriormente sob o controlo daquelas zonas do cérebro, podendo todo o resto do corpo continuar a funcionar. É da mais elementar lógica.

Mas podemos questionar ainda, então como se explica que alguém possa ficar totalmente inanimado fisicamente, e ainda assim a sua consciência continuar a funcionar. E é isto que Damásio explica como sendo uma pequena zona em concreto localizada no Tronco Encefálico, entre o cérebro e a medula, a que ele chama de Regulador das informações que vêm do corpo, e que vêm do cérebro.  Se o fluxo que vem do cérebro para a zona de regulação for cortado (ex. AVC), entramos em coma. Ou seja deixamos de ter acesso ao fluxo do Eu, às imagens mentais. As imagens mantém-se lá, mas não conseguindo aceder-lhes, perdemos a consciência, deixamos de nos sentir, de saber que existimos.

Ponto Regulador da informação proveniente do cérebro e do corpo

Se o fluxo que vem de baixo for cortado (ex. queda com entorse na zona do pescoço), perdemos o acesso à informação que vem do corpo, mas o Eu continua a funcionar, criando a sensação de "preso dentro do próprio corpo". Damásio cita o magnífico filme de Julian Schnabel, Le Scaphandre et le Papillon (2007).

Le Scaphandre et le Papillon (2007) de Julian Schnabel

Para fechar Damásio fala sobre os níveis da Consciência, e os níveis que partilhamos com os outros animais, deixando como exclusivo nosso apenas a capacidade do Eu se Autobiografar. E é desta capacidade de autobiografia que surge a imaginação, a memória de longo prazo, a razão, a criatividade, assim como tudo aquilo a que chamamos de cultura, desembocando num processo que podemos definir de Regulação Sociocultural. Este processo aqui definido por Damásio, abre portas a toda uma outra discussão, que anda em volta das questões que definem as acções humanas na produção de cultura, e que se tem definido por uma batalha entre o campo que defende a biologia como origem de tudo, e os que defendem o social como o criador das acções humanas. Mas como disse, é toda uma outra discussão. Vejam a Talk e interroguem-se vocês mesmo.

Ted Talk de Antonio Damasio, The quest to understand consciousness (2011)