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abril 21, 2020

“Devs” (2020)

Alex Garland deu-nos anteriormente o livro “The Beach” (1996), depois escreveu os filmes de “28 Days Later” (2002) e “Sunshine” (2007), o videojogo “Enslaved: Odyssey to the West” (2010) e o guião para “Never Let Me Go” (2010). Em 2014 fez direção pela primeira vez com “Ex Machina” e novamente em 2018 com “Annihilation”. Todas estas obras, sem exceção, possuem em si uma parte do talento de Garland. Mesmo em adaptações como “Never Let Me Go” do nobel Kazuo Ishiguro,  ou “Annihilation” de Jeff VanderMeer é possível sentir um pulsar que nos transporta até ao universo particular de Garland. “Devs” (2020) não é diferente, antes pelo contrário, é puro Garland estendido por 8 episódios, 6 horas de experiência audiovisual. Depois de começar, somos enredados numa trama de ficção-científica que cruza todos os nossos dilemas com as grandes empresas tecnológicas atuais e o desenvolvimento de um conceito hipotético que atiça a nossa curiosidade a ponto de só conseguirmos descansar nos créditos do último episódio.
O conceito apresentado é distinto, surpreende-nos e puxa pela nossa imaginação, contudo pouco depois percebemos como é posto em prática, o que o sustenta, no caso o determinismo, e começamos aos poucos a desligar por via de alguma descrença, mas Garland antecipa claramente isso e traz para a discussão a antítese do multiverso. Somos assim brindados com várias discussões instigantes sobre ambas as possibilidades e acompanhamos as mesmas até ao final. Não posso dizer que seja totalmente inovador, além do choque entre as ideias, muitas dessas têm sido amplamente discutidas, tanto nos diferentes media — livros, jogos e filmes — como na Física e Filosofia ao longo de séculos.
Provavelmente existe aqui a funcionar todo uma arte própria de Garland, tanto no domínio da escrita como no domínio do universo atmosférico da série que se edifica em cenários, música e fotografia absolutamente graciosos. Não posso dizer o mesmo das interpretações que têm momentos muito bons, mas apresenta também alguns momentos mais fracos. No entanto, a série consegue elevar-se a um nível de erudição raramente visto em televisão e manter a atração audiovisual intacta.

Deixo duas estrofes do poema "Aubade" de Philip Larkin, recitados por um dos personagens, já perto do final, que espero que sirvam para vos abrir o gosto e instigar a ir ver a série.
“I work all day, and get half-drunk at night. 
Waking at four to soundless dark, I stare. 
In time the curtain-edges will grow light. 
Till then I see what’s really always there: 
Unresting death, a whole day nearer now, 
Making all thought impossible but how 
And where and when I shall myself die. 
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.” 
 
The mind blanks at the glare. Not in remorse  
—The good not done, the love not given, time  
Torn off unused—nor wretchedly because  
An only life can take so long to climb 
Clear of its wrong beginnings, and may never;  
But at the total emptiness for ever, 
The sure extinction that we travel to 
And shall be lost in always. Not to be here,  
Not to be anywhere, 
And soon; nothing more terrible, nothing more true. 


       excerto de "Aubade" (1980) de Philip Larkin

setembro 02, 2019

A física da natureza

Trago um dos mais impressionantes experimentos de Física que já encontrei na rede, a "máquina de ondas" ou "ondas de pêndulo", e que consiste num pêndulo constituído de várias bolas, todas lançadas ao mesmo tempo, visualizadas a partir de um ponto lateral. O efeito pendular acionado pela força da gravidade gera ressonância na frequência, que se distingue pelos tamanhos dos fios de cada bola, e produz variação sinusoidal harmónica o que acaba produzindo efeitos visuais deslumbrantes.



Visualmente é deslumbrante, não apenas pela beleza do aparente ciclo caos-ordem, mas acima de tudo pelo modo como parece traduzir a sensação motora da vida no planeta. Como se as forças da natureza atuassem sobre os corpos, transformando-os continuamente, produzindo o orgânico, o eterno e perfeito arredondadamento de todas as formas naturais, das células às órbitas dos planetas. Por outro lado, ver o modo como o movimento vai produzindo formas reconhecíveis obriga-nos também a refletir sobre o quanto daquilo que vemos, das formas visuais, ao que ouvimos, formas sonoras, não passam de ilusões, de momentos recortados da realidade que aparentam apenas comportar-se de forma distinta, seguindo simetrias.

Um pêndulo feito com 15 bolas de bilhar.

O experimento no vídeo surge sem autor, contudo o mesmo experimento pode ser observado noutro vídeo, "Pendulum Waves", criado por Nils Sorensen da Universidade de Harvard. A primeira vez que o experimento terá sido criado foi em Praga, por Ernst Mach, Professor de Física Experimental na Charles University, em 1867, tendo ficado conhecido como "Wavemachine of Mach".

novembro 15, 2018

Simulacros do Deepfake

Apresentei ontem uma keynote na conferência 2nd Conference on Pathologies and Dysfunctions of Democracy in Media Context, na Universidade da Beira Interior, dedicada ao fenómeno do deepfake e seus potenciais impactos políticos e culturais do ponto de vista da linguagem audiovisual. Em "Deepfake and the future of Audiovisual Simulacra" começo por traçar um paralelo com as edições fotográficas produzidas pelos regimes soviéticos, avançando depois para o papel da fotografia na criação de sentido, de comunidade e crença. A partir dessa perspetiva apresento o audiovisual como auto-suficiente, dotado de capacidades de simulacro, ou seja, capaz de servir de substituto de realidade, a partir do que traço algumas implicações futuras.





A palestra gerou uma discussão interessante, defrontando-se diferenças entre ficção e realidade, assim como o momento em que entramos em descrença e deixamos de acreditar no que quer que seja, pelo lado do Jorge Palinhos, ou ainda da importância e força das comunidades como "amortecedores sociais" pelo lado do Eduardo Camilo para suster os impactos do deepfake, ou ainda a importância cada vez maior da literacia audiovisual nas escolas pelo Pedro Pinto de Oliveira. O João Correia trouxe para a discussão o mundo cada vez mais constituído por crenças assentes na paisagem audiovisual.

dezembro 16, 2017

“A Estrada”, da experiência texto e audiovisual

Antes de entrar na discussão das diferentes experiências, quero deixar breves notas sobre o livro de Cormac McCarthy, “A Estrada” (2006). A história é bastante simples e direta, trabalhando o tema do pós-apocalipse que tem inundado o imaginário com múltiplas obras: filme — “Mad Max” (1979), “Stalker” (1979), "Children of Men" (2006), “The Book of Eli” (2010); videojogos — “Fallout 3” (2008), “Metro: Last Light” (2013), “The Last of Us” (2013); banda desenha — “The Walking Dead” (2003). O trabalho de McCarthy segue uma abordagem menos comum, ou seja, menos fantasiosa optando por um certo naturalismo, muito por McCarthy não ser um autor de género, acabando por realizar esta sua incursão na ficção-científica, à semelhança de outros escritores, num modo quase exclusivamente dramático, tal como aconteceu com Saramago quando fez “Ensaio sobre a Cegueira” (1998).

Depois de escrever esta análise, não poderia estar mais de acordo com a capa apresentada. Apresenta tudo aquilo que precisamos para começar e acabar a leitura. A melhor imagem do universo apresentado no livro é aquela que cada um de nós cria dentro de si próprio.

McCarthy situa a ação num momento posterior a uma qualquer catástrofe que destruiu todas as formas de vida no planeta, tendo apenas sobrevivido uma pequena parte da espécie humana. Somos colocados no encalço de um pai e filho que viajam para sul, atravessando áreas completamente inóspitas, e encontrando alguns, poucos, desses sobreviventes, quase sempre hostis. O tom é marcadamente pesado e violento, a esperança não tem significado, e por isso a ideia central da obra acaba por se centrar numa busca para a fundamentação da sobrevivência. Não raras vezes, damos por nós a questionar, tal como acontece aos personagens: "para quê tudo isto, porquê continuar com todo este esforço?" McCarthy não dá respostas, nem podia dar, essas só podem ser dadas por cada um, individualmente.

Ora o livro saiu em 2006 e o filme homónimo de John Hillcoat em 2009. Vi o filme quando saiu, tendo deixado grande impressão em mim, pela sua narrativa, ritmo e cor muito particulares. Li o livro agora, e no final resolvi voltar ao filme. Foi um choque, senti-me perturbado pelo filme ao ponto de parar a sua visualização a meio. Tal não aconteceu pela qualidade do filme, que é boa, mas pela perturbação que o filme estava a introduzir na minha experiência estética do livro. Terminei porque o filme estava a “destruir” uma experiência emocional e reflexiva criada aquando da leitura do livro. Pergunto-me se a necessidade de criar um universo subjetivo a partir da leitura, impossibilita a aceitação de um universo criado por outrem a partir do mesmo artefacto?

As memórias do filme: pai e filho, estrada, mundo sem vida, andamento em fuga, encontro de bunker, procura do sul, chegada ao mar, ondas cinzentas. Isto é o que as minhas memórias me diziam, e que se coadunaram com os traços gerais da narrativa apresentada no livro. Contudo estas memórias que tinha do filme eram imagens gráficas, borrões de cores castanho e cinza, pai e filho apenas na forma movendo-se ao longo de uma estrada com um carrinho de hipermercado. Apesar de lembrar o pai como Viggo Mortensen, não tinha qualquer recordação da cara do filho, recordava-o apenas debaixo do anoraque sempre colado ao pai. Quando agora fui confrontado com Charlize Theron, como mãe/esposa, fiquei chocado, essa memória não existia de todo em mim, tinha sido completamente apagada. Mas o que mais me impressionou, e acabou por levar a desligar do filme, foram as imagens muito vividas, demasiado reais, os movimentos e as caras dos atores, apesar de muito bons, não ligavam com a ideia criada em mim daquele universo. Era como se eles estivessem a tentar encenar algo que dentro de mim existia a partir do modo como eu vi, e vivi. Estranho.

Estranho, porque enquanto lia o livro, fui recordando o filme, mas agora percebo que ia recordando imagens gráficas, ou fotografias sem movimento, estáticas, as quais ia eu insuflando de vida com as palavras que ia lendo de McCarthy. Quando revejo filmes ou livros, sou constantemente surpreendido, quase nunca me lembro dos finais, não tenho memória das frases que foram ditas... Guardo mais impressões do que ideias, guardo sensações, se gostei ou adorei, ou se não me tocou. Guardo imagens chave, e preservo-as nos seus tons e sonoridades, crio mundos interiores do que presenciei, aproprio-me deles, faço-os meus, experiências vividas.

Na leitura este processo não é muito diferente, ou talvez seja, e é sobre isso que agora me questiono. O facto de o livro não mostrar, mas descrever por um meio simbólico (alfabeto) sem qualquer relação com a realidade, obriga-me a projetar o “teatro” completo na minha mente. Tenho de criar os personagens, desenhar os cenários e projetar as ações. Não existem pessoas de carne e osso, não existe tonalidade, luz ou sombra fechadas, sou eu quem determina o detalhe do que vai sendo descrito. Ou seja, as palavras escritas funcionam como estímulos e alicerces das realidades produzidas pelas nossas mentes.

Continuando a reflexão, sinto que temos de ir além daquilo que ficou como a grande contribuição de Umberto Eco na “Obra Aberta”, do preenchimento de espaços vazios pelo leitor. Estamos a falar da Fabula, termo proposto por Propp para definir a história cronológica por oposição ao Syuzhet (o discurso). Termo repescado mais tarde por Bordwell, entre outros autores, para definir a história que os recetores criam na sua mente por oposição à história que o autor possui e procura plasmar no texto/filme. No fundo, algo que desde o início dos meus trabalhos com a narrativa, venho trabalhando por meio do gráfico seguinte:

A história contada pelo autor e a história mentalmente construída pelo recetor. Só uma parte se interseta, o resto é parte do mundo de cada um.

Ou seja, aquilo que eu estive a tentar descrever acima, as minhas memórias do filme, e o que vou fazendo na leitura do livro, não é mais do que o natural processo de efabulação. Um processo no qual nos vamos apropriando dos eventos contados, impregnando os mesmos com as nossas experiências passadas. E é isto que faz com que a comunicação de uma ideia produza impressões tão diferentes em cada um de nós. Usar a oralidade, texto ou imagem em movimento produz naturalmente experiências diferentes, nomeadamente por meio de dois eixos qualificativos dos meios: abstrato-concreto e simbólico-realista.

Como fruto desta reflexão, compreendo agora que o meu choque ao rever o filme surge pelo contacto entre aquilo que a equipa de Hillcoat considerou ser a plastificação audiovisual correta do descrito por McCarthy e a minha fabula. Compreendo também, não sendo novidade, mas agora compreendo sentindo, porque se torna muito difícil um filme ultrapassar um livro. Durante muito tempo defendi que essa diferença assentava na capacidade descritiva do texto versus imagem. Que a imagem tem maior poder de dar a ver, mas menor poder de especificar o que sentem os personagens, já que não pode mostrar o seu interior, enquanto o texto pode descrever esse interior por meio da metaforização. Ora com esta experiência vou mais além e em direção a algo que já muitas vezes me ia sendo apresentado mas que considerava não ser chave, a subjetivação da experiência.

Ou seja, a descrição do interior dos personagens, não só é feita por meio dos símbolos do alfabeto, mas é feita por recurso a diferentes metáforas, já que não é possível descrever o que se sente sem essas metáforas. Por exemplo, quando alguém se sente triste, poderíamos simples dizer — “estava triste” — mas isso dá apenas conta da emoção sentida, não descreve como se sente verdadeiramente a pessoa. No cinema, podemos mostrar por meio de ações: mostrar o personagem cabisbaixo, sentado na borda da cama, com as mãos na cabeça, muito imóvel e olhar fixo, uma lágrima, um gemido. Mas o texto pode descrever o sentimento de formas impossíveis para a imagem, como por exemplo: “O meu coração sofre em silêncio”.

A metaforização, além de descrever, pressupõe todo um trabalho do lado do leitor que a imagem não requer, porque pressupõe experiência humana e conhecimento da realidade cultural, capaz de interpretar essa mesma metáfora. Para compreender a metáfora do parágrafo anterior, somos obrigados a recordar um momento pessoal, em que tenhamos sentido profunda tristeza, para conseguir “visualizar” a ideia — um coração sofrendo em silêncio.  Ler “Eu estou triste” e ler “O meu coração sofre em silêncio”, produz sensações distintas porque o segundo obriga a emoldurar o texto com os sentires pessoais de cada um dos leitores.

Neste sentido, quando lemos metáforas, as imagens mentais que vemos são nossas, totalmente subjetivas. Por isso, a leitura é a criação de fabula do leitor, porque o texto é completamente reconstruído em nós, alimentado pela nossa própria mundividência. Por isso, também não admira que os jovens tenham dificuldade na leitura de obras mais elaboradas, pois sem experiência da realidade, sem conhecimento do mundo, é difícil compreender o que nos vai contando o texto. Já um filme é, em princípio, bastante mais acessível, uma vez que não pode simplesmente evocar imagens nossas, tem de as apresentar de modo concreto, e elas têm de ser o mais amplamente reconhecíveis, ou seja, fruto de generalização realista.

Em “A Estrada”, a relação pai-filho é por si só um par descritivo potenciador de metáforas a requerer constante interpretação do leitor, e que será tanto ou mais interiorizado, ou seja mentalmente visualizado e sentido, quanto maior for a experiência do leitor nesse tipo de relação, nomeadamente do ponto de vista escolhido por McCarthy, o do pai. Neste sentido, durante a leitura, não raras vezes, recorri à minha relação com o meu filho para compreender completamente o que se passava em cada quadro. Contudo, ao ver o filme, essa situação deixou de acontecer, porque tinha atores de carne osso, pessoas humanas, na minha frente. Podia comparar, podia imaginar o que faria eu, mas não podia substituir as imagens que via por novas imagens criadas dentro de mim.

janeiro 13, 2017

Como filmar o pensamento

O Nerdwriter traz-nos esta semana mais um brilhante ensaio, "Sherlock: How To Film Thought", no qual dá conta cabal do modo como as séries de televisão ombreiam com o cinema. Se até aqui falávamos do modo como estas dominavam a arte do storytelling, passámos agora a falar da arte completa do audiovisual, do uso e avanço da linguagem que torna o audiovisual um meio expressivo. O cinema deixou de ser o farol e passou a ser apenas mais um dos imensos suportes. O cinema é hoje o mesmo que televisão, vídeo, web, móvel, tudo suportes. É a linguagem do audiovisual que fundamenta todos estes canais, a arte da fusão entre imagem em movimento e som.




Neste ensaio é dissecada uma cena de 3m42s de um recente episódio da série "Sherlock" (2010-..), no qual Nerdwriter demonstra algo verdadeiramente importante. O cinema, o audiovisual, sempre teve dificuldade em dar a ver o pensamento, essa capacidade esteve durante imenso tempo resguardada para a literatura. A razão é simples, o pensamento é algo interno, introspectivo e subjetivo, enquanto o audiovisual é uma arte especializada em mostrar o externo e o objetivo, ou seja é uma forma expressiva dada à extroversão. Por isso de cada vez que este tem de mostrar o que alguém está a pensar, sentir, ou refletir, é complicado. Invariavelmente as ideias acabam sendo traduzidas em ações, sequências externas, que possam dar a compreender o que sente aquele personagem, porque reage como reage, e assim passar a ideia do que está a pensar a pessoa.

Ora neste episódio de Sherlock, procurou-se antes dar a ver o pensamento. Pegou-se na mente de Sherlock, naquele momento em que ele está prestes a descobrir, a ter a revelação, e pegou-se no melhor que a arte audiovisual tem — a montagem e a cinematografia — e plasmou-se no ecrã, literalmente, aquilo que lhe está a passar pela mente. O Nerdwriter termina dizendo que esta é uma das sequência original e admirável.

"A Requiem for a Dream" (2000) Darren Aranofski

É claro que o Nerdwriter se deixa levar pelo entusiasmo, desde logo quando diz que não há CGI, quando várias das sequências estão prenhes de efeitos visuais, mas especialmente porque isto não é novo. Mais uma vez o cinema já lá tinha chegado antes, e o tinha mostrado, e até de forma mais efetiva. Se gostaram desta sequência, recomendo-vos vivamente "A Requiem for a Dream" (2000) do brilhante Darren Aranofski. A mim contudo, resta-me uma questão, porque razão só se procura mostrar o interior da mente dos personagens quando eles estão sob efeito de drogas!?

"Sherlock: How To Film Thought" (2017) de Nerdwriter

julho 09, 2016

“Amblin” (1968)

Já o vi há alguns anos, e anda na rede há quase uma década, trago-o só agora porque enquanto via um pequeno documental sobre a evolução do cinema de Spielberg revi imagens e lembrei-me de ter gostado deste primeiro trabalho de Spielberg em 35mm. Não sendo nenhuma obra-prima, dá conta do talento latente que Spielberg vinha desenvolvendo com experimentos mais caseiros como “Firelight” (1964).




Amblin” tem 26 minutos, algo longo para curta, nomeadamente uma primeira filmada em 35mm e com um orçamento de apenas 15 mil dólares, mas seria este o filme a abrir as portas de Hollywood a Spielberg, nomeadamente a servir de nome a sua futura produtora que hoje se socorre também da imagem do filme “E.T. the Extra-Terrestrial” (1982) para logotipo.

O seu valor hoje serve mais o âmbito pedagógico do que o entretenimento, ou seja “Amblin” é um filme altamente recomendável a estudantes de cinema e audiovisual em geral, interessados em começar a criar as suas primeiras obras. Os principais pontos a destacar são o facto de termos apenas duas personagens, não termos diálogo, não termos som direto, fazer uso de câmara simples sem gruas ou qualquer outra tecnologia complexa, ou seja, temos a essência do audiovisual totalmente ao serviço do contar de história.

Spielberg demonstra neste curto filme como sempre se preocupou mais como os humanos na tela, com a construção da empatia e a geração de experiências ricas para os espectadores, e que apesar de ser reconhecido como um mago do espetáculo, a sua força enquanto autor tem estado mais ligada à capacidade de construir e dar a experienciar histórias com que qualquer ser humano se consegue conectar.

Amblin” (1968) de Steven Spielberg

junho 06, 2016

Contar histórias em 360º

Pearl” é uma animação criada por Patrick Osborne para o formato 360º, dotada de belas história, ilustração e animação, capaz de rentabilizar na perfeição a inovação introduzida pela perspetiva 360º, embora não demonstre per se como é que o formato poderá vir a tornar-se um standard no futuro.




Osborne parte da simples premissa de que o 360º, apesar de abrir em todas as direções, congela o eixo do ponto de vista, impossibilitando o seu movimento, e ainda bem. Poder ver em todas as direções é já pesado em termos cognitivos para o espectador, se pudéssemos ainda variar o eixo do ponto de vista, a experiência tornaria-se simplesmente insustentável já que perderíamos a ação desempenhada para suportar o contar de história.

Deste modo a experiência criada acaba funcionando muito bem, exatamente porque o autor soube encontrar um ponto de vista capaz de garantir a variedade de espaço (ver making of), isto porque o ponto se vai movendo, sem qualquer ação da nossa parte, fruto do objeto em que se encontra inserido (o carro). Contudo, por várias vezes damos por nós a tentar virar rapidamente em ambas as direcções para conseguir acompanhar o que estará supostamente a acontecer, e esse acaba por ser o maior problema da abordagem 360º ao contar de histórias.

Apesar destes reparos negativos, esta abordagem tem uma mais valia indubitável que se pode ver emergir aquando de uma segunda ou terceira visualizações, mas a grande questão é se é esse será o objetivo desta, ou outras obras?

"Pearl" (2016) de Patrick Osborne

junho 04, 2016

Fragmento e detalhe no title design de Filipe Carvalho

Filipe Carvalho é uma das referências internacionais no mundo do title design (design de genéricos) e esteve recentemente no Semi Permanent 2016 em Sydney, para o qual criou também o genérico promocional do evento que podemos ver abaixo, agora disponibilizado pelo Art of Title.






O seu mais recente trabalho está nas salas de cinema e serve a abertura e fecho de “Alice Through the Looking Glass” (2016). Se quiserem mais, podem seguir o seu trabalho a partir do seu site Random Thought Pattern. É verdade que o Filipe não se dedica apenas ao title design como poderão ver na página, e também como se pode ver desde já neste filme para a Semi Permanent, o seu trabalho distribui-se por todas as áreas relacionadas com a imagem em movimento, desde a realização à edição, passando pela cinematografia, produção e inevitavelmente o design.

Este filme é paradigmático de toda essa versatilidade de Filipe Carvalho, e por isso é também tão relevante na análise do seu percurso já que dá conta do amadurecimento, da capacidade de conduzir o todo da experiência plástica audiovisual para o conceito visionado. Sendo o title design, tal como grande parte do motion design, uma espécie de arte de fusão, pela apropriação de conceitos e objetos, sua colagem e mistura, é-o sem parecer um mero compilar de elementos, e é talvez por isso mesmo que se tem destacado tanto, e ganho tanta importância nos últimos anos.

Podemos ver como, ao longo destes 2 minutos, são trazidos à liça, a narração de Tom Waits, o texto de Charles Bukowski, as imagens de Toros Kose, a música de Tiago Benzinho, tudo (excepto a música) é servido em fragmentos, recortes, partes incompletas, desconectas, e como Filipe Carvalho reconstrói nexo, narrativiza. E não estamos a falar de mera samplagem audiovisual porque tudo é envolvido por um conjunto de novas imagens criadas pelo próprio Filipe (ver making of).

"Semi Permanent 2016 Opening Titles" de Filipe Carvalho

Se a música nos parece ser a pauta que lima os desfasamentos, e mesmo reconhecendo a sua enorme mais valia, é a partir do trabalho de composição visual que o sentido emerge, pela sua produção de valor estético. O modo como se trabalha a fragmentação e o detalhe de todos os elementos, nomeadamente a tríade — movimento, espaço e conceitos — acaba sendo a responsável por garantir a expressividade e identidade de todo o texto audiovisual.

fevereiro 09, 2016

Vertigem audiovisual

Parece fácil, parece ad hoc, coincidências suportadas por processamento computacional, mas não, é muito pouco disso, é muito trabalho, muito tempo investido no desenvolvimento de sensibilidade capaz de captar e editar assim. É a primeira vez que aqui trago trabalho de Leonardo Dalessandri que segue uma linha de filmes web desenvolvida por criadores como Matty Brown e Jason Silva, e que podemos apelidar de vertigem audiovisual.





Esta abordagem estética caracteriza-se essencialmente pela velocidade e ritmo imprimido por via da montagem, assim como pela alternância entre planos gerais e planos de pormenor, socorrendo-se ainda de artifícios como a câmara lenta, acelerada e reversa. A experiência constrói uma espécie de pequena janela para uma realidade nova, que se consome em poucos minutos deixando uma impressão profunda, que perdura como uma essência de perfume.

Deixo apenas um dos filmes de Leonardo Dalessandri, Watchtower of Turkey, mas aconselho vivamente uma visita ao seu Vimeo, no qual destaco a recente colaboração com Jason Silva em "Captains of Spaceship Earth" (2015), pelo texto de Silva sobre os efeitos dos media.

"Watchtower of Turkey" (2014) de Leonardo Dalessandri

dezembro 20, 2015

Processos de criação narrativa escrita

Chuck Palahniuk é um escritor americano, internacionalmente consagrado pela obra “Fight Club” (1996), que deu origem ao filme homónimo de David Fincher (1999). Entre 2005 e 2007 Palahniuk desenvolveu um conjunto de ensaios sobre o processo de escrita, tendo criado um total de 36 textos que podem hoje ser lidos integralmente no site LitReactor.



Chuck Palahniuk fotografado por Jonh Gress

Palahniuk tem uma escrita dura, as suas obras rodam à volta do género conhecido por “ficção transgressiva”, ou seja, histórias de liberação das normas da sociedade pela força, o que faz deste um autor muito interessante em termos criativos já que o seu trabalho tem de obrigatoriamente fomentar uma constante troca de descrições entre as internalidades e externalidades, entre os pensamentos interiores dos seus personagens e a sua ação sobre o real. Assim, se da leitura dos ensaios resultar a ideia de que estes ensaios servem apenas uma escrita mais cinemática, ou seja exterior e visual, bastará pensar que a descrição psicológica dos personagens não pode existir sem consequência no real, algo que Palahniuk compreende muito bem.

Não li todos os 36 ensaios, até porque não estou à procura de me tornar num romancista, interessa-me mais conhecer os processos, para assim poder analisar melhor o que está por detrás da mente de quem cria. Interessa-me até mais o cinema e os videojogos, mas estes quando narrativos diferem muito pouco da literatura, o que faz com que qualquer bom realizador ou designer de jogos narrativos, seja obrigado a deter uma grande bagagem de leitura, reforçando assim a interligação entre estes três meios.

Em caso de dúvida reparem no processo de escrita mais fortemente referenciado por Palahniuk ao longo dos vários ensaios, o “unpacking”. Este processo não tem nada de novo é comumente conhecido como “desconstrução”, mas se Palahniuk opta em sua vez por “unpack”, não é por acaso, é porque dá conta, de um modo muito mais descritivo e visual, do que realmente se trata. Ou seja, o “tirar da caixa” ou “desempacotar” assume uma relação direta com o processo de expressão ou verbalização, isto é, de dar vida exterior a uma ideia que temos apenas na nossa mente, dentro da caixa, que vemos como o nosso cérebro, ou crânio. Assim quando temos uma ideia para algo que deve acontecer numa história não chega pensar a ideia em termos imaginários, é preciso realizar sobre essa todo um processo de desempacotação, capaz de traduzir essa mesma ideia em algo externo que a expresse. E é aqui que entram os outros meios, porque esse “algo” pode ter a forma de texto, mas pode ter a forma de filme ou de jogo, é indiferente porque o unpacking tem de acontecer sempre.

Posso dizer que do que li fiquei deveras impressionado. Palahniuk não floreia nem tenta construir teorização sobre o processo de escrita, é muito direto e concreto. Ou seja, os conselhos que vai descrevendo são dirigidos a questões muito práticas, questões que raramente ouvirão numa aula de literatura, porque não dizem respeito à estética mas apenas e só ao processo de criação artística. Apesar disso, o modo como descreve o que tem a dizer segue toda uma postura académica, com uma estrutura metódica e focada na aprendizagem, com os textos ordenados segundo uma composição tripartida: 1) pequena história introdutória que dá vida ao conceito; 2) discussão e desconstrução do conceito; 3) trabalho de casa ou sugestões para aplicar os conceitos. Assim resolvi escolher alguns excertos que mais me chamaram a atenção, e transcrevi para aqui algumas passagens:


3: Using “On-The-Body” Physical Sensation
“It’s one thing to engage the reader mentally, to enroll his or her mind and make them think, imagine, consider something. It’s another thing to engage a reader’s heart, to make him or her feel some emotion. But if you can engage the reader on a physical level as well, then you’ve created a reality that can eclipse their actual reality. The reader might be in a noisy airport, standing in a long line, on tired feet – but if you can engage their mind, heart and body in your story, you can replace that airport reality with something more entertaining or profound or whatever.”
..
“Words like “searing pain” or “sharp, stabbing pain” or “throbbing headache” or “ecstatic orgasm” don’t evoke anything except some lame-ass paperback thriller book. Those are the cliches of a cheating writer. Little abstract short-cuts that don’t make anything happen in the reader’s gut.
No, you want the pain – or whatever physical sensation – to occur in the reader, not on the page. So un-pack the event, moment by moment, smell by smell. Make it happen, and let the sensation of pain occur only in the reader.”

6: Nuts and Bolts: “Thought” Verbs (online)
“In six seconds, you’ll hate me. But in six months, you’ll be a better writer. From this point forward – at least for the next half year – you may not use “thought” verbs.  These include:  Thinks, Knows, Understands, Realizes, Believes, Wants, Remembers, Imagines, Desires, and a hundred others you love to use. ”
..
“Instead of saying:  “Adam knew Gwen liked him.” You’ll have to say: “Between classes, Gwen was always leaned on his locker when he’d go to open it.  She’d roll her eyes and shove off with one foot, leaving a black-heel mark on the painted metal, but she also left the smell of her perfume.  The combination lock would still be warm from her ass.  And the next break, Gwen would be leaned there, again.” In short, no more short-cuts.  Only specific sensory detail: action, smell, taste, sound, and feeling.”
..
“Thinking is abstract. Knowing and believing are intangible.  Your story will always be stronger if you just show the physical actions and details of your characters and allow your reader to do the thinking and knowing. And loving and hating.”
..
“Un-pack. Don’t take short-cuts.”

16: Learning from Clichés… then Leaving them Behind
“One of the best self-teaching methods is to “ape” or mimic the style of writers you enjoy.
..
We learned to write the way so many apprentice painters learn to copy masterpieces in museums. This is a fun, effective way to learn another writer’s techniques from the inside, duplicating them until they come naturally in your own work. Then, you can create variations on the techniques, breaking the rules and combining them with the techniques you’ve learned by copying other writers. That way, by mixing and sampling and copying – not just writers but people you hear speaking, telling stories next to you at Starbucks – that’s how you develop a personal, signature “voice” for your own work.
Don’t worry, even if you become a parrot, echoing the voice of another writer in everything you write – you’ll get past that. You’ll get bored and evolve. Another voice will arrive to teach you something new. Most of us seem to create ourselves from the behavior modeled by our peers. We pick and choose speech patterns and gestures and mimic them. The ones that work, we incorporate into our daily presentation. It’s the same with writing styles.”

19: Effective Similes (Diferentes da Metáfora)
“I hate similes. Tose phrases that compare one thing to another. “Her hair had the softness of rabbit’s fur.” Or, “His cheeks were like raw meat.”

Anytime you want to use a simile, a metaphor will usually work better. Stronger. Instead of: “Being married to Jim was like driving five years down a dirt road”... the stronger version is: “Being married to Jim was five years of driving down a dirt road.” Or better yet, “Being married to Jim left you shaky as a five-year drive down a dirt road.”

“Limit your similes. Every time you compare something inside of a scene to something that’s not present, you distract your reader – taking them out of the moment – and losing energy. “The preacher’s hands were like pale birds,” forces us to picture birds, then maybe doves, maybe some other white birds, pigeons, nesting or flying, blue sky, clouds, and we’re lost. To avoid this, use only your strongest similes, and try to reuse them. Consider, “The preacher’s pale hands curled together in his lap, nested still and tight as a pair of dead birds.” Again, unpack the verbs – exactly how is one thing similar to the other. And describe the actual item before comparing it to something else.”


Por fim deixo um conselho meu sobre o modo de usar estes 36 ensaios. Não vejam neles as linhas mestras das quais não se podem desviar, mas antes linhas orientadoras que nos podem ajudar a progredir. Todo este tipo de trabalho é sempre muito atacado por estar a tentar normativizar processos artísticos, do meu lado sou totalmente contra tais ataques, já que não é nada disso que se procura aqui. Interessa apenas aqui iluminar um caminho possível, criar atalhos para a compreensão da arte, no fundo transmitir conhecimento sobre um processo, aquilo que passamos todo o tempo a fazer enquanto professores. Mas é verdade que se não aceito os ataques pela normativização, tenho de admitir que existem aqui alguns perigos, como é normal em qualquer atalho.

O primeiro diz respeito ao tipo de conhecimento em questão, porque sendo um processo de criação artística que depende de forte conhecimento tácito, levanta obstáculos à apreensão por mera transmissão de informação. Ou seja, não é possível verdadeiramente apreender nenhuma das técnicas descritas nestes ensaios sem realizar um grande investimento experimental, passar horas e horas a escrever, produzir centenas e centenas de páginas, até que estas regras, aqui tão simples, se tornem parte da natureza de quem as pretenda dominar.

O segundo perigo ou problema, assenta sobre o potencial de se poder criar a ideia, errónea, de que conhecendo o processo que os escritores usam deixa de ser necessário passar pelas obras que estes criaram. Não podemos esquecer que aquilo que temos aqui é apenas um conjunto de estruturas, de sínteses de padrões de escrita, uma espécie de esqueletos que suportam a carne, as histórias. Para quem quer escrever, realizar ou desenhar jogos, é preciso consumir muita carne, pois só esta poderá dar base suficiente para a criação de novas histórias. Sem a leitura em profundidade e diversidade é impossível produzir algo que vá para além do senso comum, ou da imitação superficial do que nos rodeia no dia-a-dia, daí que a leitura seja fundamental para qualquer criador, não apenas o escritor, mas também o realizador e o designer.


Os ensaios não estão em livre acesso, o que me levanta muitas objeções, nomeadamente porque os textos foram oferecidos pelo autor, que os poderia ter transformado em livro e vendido, mas optou por não o fazer. Deste modo têm duas opções, se vos interessar o site, que apresenta muitos outros conteúdos além destes, inscrevem-se e fazem download, de outro modo podem procurar online e irão encontrar várias compilações dos 36 textos, deixo um exemplo.

setembro 13, 2015

A arte para além dos filtros dos media

Desta vez o Nerdwriter execedeu-se, através da sua web série, Understanding Art, e por meio da desconstrução do filme "Children of Men" (2006), realizou todo um trabalho de análise e crítica ao momento atual que se vive de crise humanitária, com migrantes e refugiados em fuga das guerras do Médio Oriente para a Europa. São 7 minutos de puro rasgo e brilho interpretativo do cinema, na demonstração da importância e alcance da arte.





Evan "Nerdwriter" Puschak começa por desmontar "Children of Men" na sua construção de quadros, com fundos plenos de significado, que Cuáron construiu de suporte ao mote narrativo do filme. À superfície seguimos Clive Owen na sua tentativa de salvar a última mulher que pode ter filhos, mas por detrás deste, deste nosso herói/narrador, muito vai acontecendo, vamos sendo expostos não apenas ao que aparentemente está acontecer, a destruição e decadência, mas vamos sendo chamados a interpretar tudo isto em função de um passado já antes exposto pela arte. De certo modo Cuáron está à procura da redundância, acreditando que já não basta mostrar o declínio humano, é preciso reforçar a interpretação da sua relevância, para que nós, cidadãos cada vez mais insensíveis às imagens que os media vão filtrando, possamos ser retirados do conforto dos nossos sofás, e ponhamos o nosso pensamento a funcionar.

"Children of Men: Don't Ignore The Background" (2015) de Nerdwriter


Por fim, dizer que esta é a segunda vez que trago aqui "Children of Men" pelo seu valor estético, quando na primeira vez que o vi falhei completamente na sua apreciação. Anteriormente foi graças ao Fernando Martins que lhe reconheci a inovação cinematográfica. Desta vez, tenho de o agradecer a Nerdwriter. Tudo isto apenas reforça a minha ideia de que devemos humildade, na hora de julgar obras e criadores.

junho 16, 2015

M+, um blues digital

Foi com um enorme agrado que vi, e ouvi, o primeiro teledisco da nova banda, M+, desde logo por reconhecer ambas as caras, de mestrados em que leccionei na Universidade do Minho, cursos que parecem também ter servido para se conhecerem. Do que me lembro de ambos, a Mónica Dias manifestava um gosto enérgico pelo audiovisual, numa faceta clássica e revivalista, de algum modo ligada à sua atração pela cultura musical do Blues, já o Márcio Paranhos era imbuído de um espírito mais experimentalista, com um gosto particular pela abstração e potencial do digital. Dois pontos distantes do espectro artístico, que ao juntar-se num projeto comum, teriam forçosamente de resultar em algo criativo. Claro que se assim é deve-se às suas competências, e não apenas aos seus gostos. Gostei do género musical, que parece designar-se de synthpop, e resolvi fazer-lhes algumas questões para o blog, às quais tiveram a amabilidade de responder.

M+ (Mónica Dias + Márcio Paranhos)

:: Como surgiu a dupla? Como se conheceram, e como surgiu a ideia para avançarem para um projeto musical conjunto? 

Mónica: A dupla surgiu em outubro de 2014, aquando de uma conversa de café onde o Márcio sugeriu criarmos um projeto em conjunto.

Márcio: Nós conhecemo-nos numa disciplina opcional, numa altura em que ambos estávamos a fazer mestrado. Cedo conversámos sobre alguns dos projetos que tínhamos e que andávamos a desenvolver. No meu caso estava ligado essencialmente às artes performativas com uma vertente visual e sonora experimental, por outro lado a Mónica estava ligada a um projeto musical na onda do rock e blues.

Mónica: Estes projetos pessoais acabavam sempre por não me satisfazer, não sendo os registos que gostava de poder explorar verdadeiramente. Numa conversa, o Márcio desafiou-me a misturar os nossos dois mundos e ver o que poderia nascer desta colaboração.

:: Existe aqui uma clara clivagem, com o Márcio numa componente electrónica e a Mónica com guitarra e uma voz R&B, como é que isto tudo se conjuga? 

Mónica: Por incrível que possa parecer, a conjugação foi mais fácil do que inicialmente se previa. O Márcio tem todo um sentido rítmico que aliado à minha experiência musical permitiu uma estrutura inicial bastante sólida na construção das músicas. Sempre me fascinou a possibilidade de misturar a sensualidade do blues a uma componente energética/envolvente que a música electrónica pode proporcionar.

Márcio: Ao contrário das minhas anteriores experiências na vertente musical, que passavam sempre por projetos de teor instrumental, fazia todo o sentido unir a voz da Mónica e sair da minha zona de conforto em prol de uma sonoridade mais musical. Com isto assumido, houve um cuidado em nunca sobrepor as diferentes naturezas que nos influenciam.

Mónica: Era essencial existir uma coesão do todo, no sentido do que queríamos seguir.



:: Qual é a vossa formação musical?

Márcio: A minha formação musical baseia-se essencialmente na intuição. Ouço imensa música desde muito novo, mas nunca tive nenhuma banda nem qualquer formação. No fundo sou um autodidata e um curioso.

Mónica: Eu estou no mundo da música, tendo vindo a incluir projetos musicais, há quase 10 anos. Toco guitarra desde os 13, mas sempre numa vertente autodidata.

:: O que procuram criar com esta abordagem musical, ou seja, existe algo que tinham em mente na hora de criar, ou saiu apenas naturalmente? 

Mónica: Desde o início pensámos que era importante não ter grandes restrições no que toca à criação. Não queríamos soar a nenhuma banda em especial. O nosso único objetivo, era criar e criar até chegarmos a um resultado que demonstrasse a nossa energia, e o gosto com que procuramos fazer música.

Márcio: Como pessoas de mundos tão díspares, fazia todo o sentido quebrar regras e perceber até onde conseguiríamos ir com todo o nosso entusiasmo. Tudo acaba por ser criado num sentido espontâneo e sempre em aberto.

Mónica: O fato de não nos regermos por regras ou algum registo em especial acabou por ser o nosso maior aliado e isso refletiu-se no nosso produto final.

Márcio: No fundo, por não queremos cair em nenhum estereótipo, acabámos por criar algo que soa muito a nós mesmos. Um reflexo de intenções que contém toda uma vontade de ir em frente.



:: O vídeo foi realizado pelos dois? O que procuravam passar com o mesmo? 

Mónica: Sim, o facto de termos um "low budget" acaba por nos desafiar a encontrar formas de comunicar a nossa identidade sem perdermos a essência da música criada.

Márcio: Foi realmente uma tarefa no mínimo peculiar. Duas pessoas a filmarem-se num espaço pequeno, e vazio, e sempre com uma questão em mente: como transpor estes dois mundos que são os nossos, num sentido complementar? É na resposta a esta questão que surgem as duas cores, que nos revelam e complementam.

Mónica: As duas cores representam nada mais que a nossa individualidade em constante comunicação.

Márcio: É dessa comunicação que M+ (Mplus) acontece.

"Freedom" (2015) de M+

:: Só têm esta música, ou têm mais em carteira? Vão lançar algum EP? Quando? E concertos? 

Márcio: Na realidade, já temos um EP pronto a ser lançado já este mês.

Mónica: Esta foi uma das primeiras músicas criadas e o acordo foi mútuo quando decidimos que este seria o nosso primeiro single.

Márcio: Existem ainda uns “truques na manga” que cedo serão desvendados, mas até ao momento há uma enorme vontade de levar as músicas a público e de as apresentar ao vivo.

Mónica: Está previsto para o próximo mês um conjunto de datas que assinalam os nossos primeiros passos nos palcos. Fiquem atentos às novidades, porque cedo anunciaremos datas de espetáculos.



Para mais informações sobre a banda, podem aceder à sua página facebook.

maio 25, 2015

Outros Lugares (virtuais)

Depois de Duncan Harris ter lançado a moda da Fotografia de mundos virtuais de videojogos, com o seu Dead End Thrills, agora Andy Kelly apresenta uma nova ideia, criar Video a partir desses mundos, com o seu Other Places. Assim, além das imagens estáticas de Harris temos agora também movimento e música a contribuírem para o aspeto narrativo dos excertos. É interessante como estes vídeos nos vêm permitir fazer algo para o qual, enquanto jogamos, nos parece nunca haver tempo, que é contemplar o espaço, o mundo que nos circunda, que apesar de virtual o sentimos tão real.




Confesso que fiquei um pouco desiludido com os trabalhos finais, esperava mais dos enquadramentos, montagem e até do som, principalmente quando comparamos com o magnífico trabalho fotográfico de Harris. Ainda assim são filmes que nos permitem reviver momentos, memórias, e até criar novas, com novos significados. Deixo abaixo um filme que resume o primeiro ano de trabalho de Kelly, ao longo de 2014.

"Other Places: Year One" (2014) de Andy Kelly

janeiro 30, 2015

A ideologia de Miyazaki

Trago o pequeno ensaio-audiovisual "Hayao Miyazaki - Nature, Culture, & Character" (2014), criado por Zackery Ramos-Taylor e Gacinta Moran, estudantes de cinema da UC Santa Cruz, que discute a ideologia subjacente aos filmes de Miyazaki, nomeadamente o modo como ele consegue gerar interesse tanto no oriente como no ocidente. Um dos aspectos mais interessantes aqui debatido, é a forma como o género sai retratado nas suas obras, ocupando imensos papeis principais, e alguns de grande força. A justificação de Miyazaki para tal não podia ser mais simples e directa, deve-se ao facto de no estúdio, aparentemente, trabalharem mais mulheres que homens.





O trabalho de Miyazaki é uma referência no mundo da animação, do cinema, e da cultura. O modo como ele consegue imprimir uma marca autoral nas suas obras, faz com que se demarque totalmente do universo Disney-Pixar, que por seu lado se fixa mais em valores universais. Ou seja, Miyazaki não se coíbe de expressar o que sente, ou como reflecte sobre o mundo em que vive, apresentando as suas ideias, distintas e que nos obrigam a reflectir. Já a Disney-Pixar preocupa-se mais em reforçar aquilo que nós como sociedade já conhecemos e aceitamos. Poderíamos dizer que aquilo que separa estas formas de fazer cinema está na capacidade, ou risco, de gerar confrontação intelectual.

Em termos experienciais posso dizer que quando acabo de ver um filme Pixar/Disney sinto gratificação, a viagem foi agradável, muitas vezes pelo deslumbre com a excelência nos campos técnico e estético. Mas não fico a pensar no que vi, foi bom, mas terminado parto para a próxima ideia. Quando termino um filme de Miyazaki demoro a sair do filme, o meu pensamento parece que fica ali enredado, é como se aquelas formas particulares de modelar o mundo me tentassem modelar as minhas próprias ideias, criando um debate entre aquilo que eu era, e aquilo que passo a ser.

"Hayao Miyazaki - Nature, Culture, & Character" (2014) de Zackery Ramos-Taylor e Gacinta Moran

dezembro 14, 2014

Narrativas que Bifurcam a nossa Percepção

"Neblina" (2014) é um belíssimo trabalho de experimentação com a linguagem audiovisual ao nível da participação do receptor, uma busca pela criação de acessos à plástica da matéria audiovisual, um redesenhar da experiência do espectador que o obriga a participar na construção do sentido. "Neblina" é uma obra audiovisual interactiva enquadrada no âmbito do projecto "Os Caminhos que se Bifurcam" do colega Bruno Mendes da Silva, professor da Universidade do Algarve.




Do ponto de vista plástico temos, para começar, vários elementos de enorme qualidade que são combinados para engendrar toda uma atmosfera capaz de nos conduzir à suspensão da descrença, desde logo começando pela neblina que paira ao longo de quase todo o filme e cria um universo próprio, muito ficcional mas ao mesmo tempo cinematograficamente crível. Aliás todo o trabalho respira influências profundamente cinematográficas, desde logo com a banda sonora que começa num registo Nymaniano, muito atmosférico capaz de nos colar aos personagens que vão surgindo no ecrã, para a seguir nos levar para um registo clássico e Hitchcockiano que nos questiona - quem são, porque estão ali, o que fazem, para onde vão - num suspense que emerge e adensa o sentido, acalentando o nosso interesse pelo que estamos a experienciar. Tudo isto é envolvido por uma fotografia a preto e branco de grande qualidade do Rui António, com contrastes marcados, servindo a luz como pincel da expressividade de cada momento que se vive na tela.

Ainda no campo audiovisual tenho de ressaltar o uso da narração ao longo de todo o filme, porque se por um lado a podemos encarar como uma estratégia menor no dar a ver, porque colando sentidos aonde a imagem não consegue chegar, neste caso concreto acaba servindo um papel estruturante, questionando-me mais uma vez, porque obcecamos nós tanto com a especificidade de cada linguagem? Porque é que o cinema tem de ser capaz de mostrar tudo e nada deve dizer, ou porque é que o videojogo tem de ser totalmente interactivo e não pode por vezes também parar, e simplesmente dar a ver? Não será a linguagem audiovisual a linguagem de síntese, aquela que se forma do todo, que tanto pode dar a ver, como dar a ouvir, como logo a seguir dar a participar?

Desconstruindo agora a componente de interacção, em "Neblina" temos 3 fluxos de imagem em movimento e 1 fluxo único sonoro. A interface permite-nos saltar entre os 3 por meio de dois botões, à esquerda e direita da projecção central, sem que a componente sonora se altere. Do ponto de vista do design da interacção diria que a abordagem do Bruno se aproxima bastante da abordagem escolhida por Miquel Dewever-Plana e Isabelle Fougère no seu documentário “Alma, a Tale of Violence” (2012), que tinha já sido muito feliz, e aqui volta a demonstrar todo o seu interesse. Ou seja, a manutenção de um fluxo contínuo sonoro facilita a vida aos criadores, que podem assim desenhar a experiência num tempo fixo, mas para o espectador torna também a obra mais acessível. Ou seja, o facto de existir uma faixa sonora contínua mantém-me dentro da atmosfera da obra, porque me oferece a  garantia de que continuo no caminho certo, isto é, esperado pela obra, e assim relaxa-me para que aproveite e desfrute da interacção com a componente visual, sem o receio de me perder, ou de perder algo que possa comprometer a obtenção de significado.

Chegando agora ao desenho dos acessos participativos na narrativa, tenho a dizer que funcionam de forma soberba muito por força da narração. Mesmo apontando a crítica que já apontei acima, do facilitismo que é usar o texto em vez da imagem para contar, a verdade é que não consigo deixar de pensar em duas grandes obras do espectro audiovisual, provenientes de extremos opostos e que se socorrem da mesma técnica - o filme “Europa” (1991) de Lars Von Trier e o videojogo “Bastion” (2011) da Supergiant Games. A narração em “Europa” tem um efeito profundamente hipnótico, pela atmosfera que vai construindo, ao passo que em “Bastion” tem como missão conduzir o jogador ao longo do espaço-história. Ora em “Neblina” acontecem ambas as coisas, já que a voz começa por nos introduzir ao universo, seduzindo-nos e enlaçando-nos, para depois nos conduzir e atribuir sentido à nossa participação. A voz é a nossa companheira de viagem, se por um lado me faz sentir dentro do universo ficcional pelo seu tom misterioso, faz-me também sentir seguro o suficiente para experimentar com a navegação do sistema, para saltitar entre fluxos, e à medida que o vou fazendo vou ganhando um conhecimento mais profundo do sistema, e por conseguinte dos significados daquilo que estou a experienciar.

Esta segurança no visionamento que a voz confere por meio de uma cola sonora, é também fortemente sustentada por uma outra técnica empregue de forma deliciosa pelo Bruno, que é a repetição de planos, assim como o seu uso em câmara lenta. A repetição juntamente com o desaceleramento do tempo da acção, permite-me saltitar entre fluxos sem que se crie aquela sensação de que se perdeu algo. Ou seja, quando salto entre fluxos, e vejo a repetição, ou o resto da repetição dada a sua languidez temporal, sinto-me aliviado porque não perdi o "novo", nada de "novo" surgiu ainda, e por isso posso voltar a saltitar sem medo em busca do "novo" noutro fluxo.

Deste modo, pouco depois de entrarmos na experiência damos por nós a interagir continuamente com a obra, porque à medida que a narrativa vai progredindo sentimos que cada um dos fluxos nos vai oferecendo uma compreensão que alarga os horizontes do fluxo principal. Acabamos por perceber que é na constante mudança entre os 3 fluxos que acaba por se desenhar o todo, e é por isso que “Neblina” acaba sendo uma experiência interactiva tão interessante. Porque a nossa participação, a nossa acção e interacção com a obra se torna um vício, não conseguimos parar de saltitar entre fluxos em busca de sentidos, tentando completar, tentando complementar. O Bruno conseguiu desenhar uma interacção narrativa que divide os sentidos presentes na faixa sonora pelas 3 faixas visuais de um modo que nos impele a interagir, não apenas porque queremos mais, mas também porque sentimos recompensa nessa interacção, sentimos que a obra se vai abrindo a nós, se nos vai oferecendo, e por isso nos mantemos ali, hipnotizados e à mercê da mesma.

Tenho de dizer que fui levado a visionar a obra várias vezes, daí que aquilo que aqui relato possa ser fruto desta minha ligação à experiência que se intensificou com cada uma das repetições da experiência. Sei que este modelo de interacção narrativa não serve todas as narrativas, é apenas um modelo, mas é um modelo que funciona, que pode servir na criação de novos trabalhos e que apresenta espaço para melhorias. E por isso quero agradecer profundamente ao Bruno por esta obra que rasga e trilha um novo caminho na produção audiovisual interactiva nacional. Esperemos que mais pessoas, nomeadamente alunos de mestrado ou doutoramento, vejam neste trabalho um ponto de partida para a criação de novos projectos na área.

Para experienciarem "Neblina" devem aceder à página da obra, clicar primeiro em "Como ver", e depois então entrar no primeiro link "Neblina". Utilizem o Safari para o visionamento, já que no meu caso tanto o Chrome como o Firefox apresentaram alguns problemas técnicos.


Nota: Não raras vezes enviam-me projectos (filmes, videojogos, aplicações, etc.) para analisar/avaliar aqui no blog, acontecendo muitas vezes não dar resposta. Deste modo quero aproveitar este trabalho para explicar porquê. O Bruno, sendo um colega com quem tenho trabalhado nos últimos anos, fez-me chegar este link em Julho de 2014, contudo demorei seis meses a dar conta do mesmo aqui. As razões para tal são variadas, neste caso a complexidade do trabalho exigia que eu dedicasse tempo de qualidade, e para isso precisava de tempo mas também da disposição mental correcta. Por vezes numa análise na diagonal consigo descartar de imediato os projectos que me enviam, sendo maus não falo, mas quando são interessantes procuro dedicar-lhes algum tempo, e isso acaba por os atirar para baixo na lista de coisas a fazer no blog. Isto não desculpa alguns esquecimentos da minha parte, mas espero que ajude a dar a conhecer um pouco melhor o processo.