Mostrar mensagens com a etiqueta análise. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta análise. Mostrar todas as mensagens

fevereiro 25, 2020

O Viés de Lucrécio

“The Swerve: How the World Became Modern” é um livro de divulgação científica centrado na teoria dos estudos literários que defende a obra “Da Natureza das Coisas”, de Lucrécio, como um dos principais motores do período da Renascença e consequentemente da Ciência, apontando o poema como pilar da criação do mundo moderno. O poema de Lucrécio foi publicado por volta de 55 a.C, sendo que a razão pela qual se sugere esta relação com o renascentismo tem que ver com o facto de ter praticamente desaparecido durante toda a Idade Média, tendo sido apenas recuperado em 1417 por Poggio Bracciolini, num mosteiro alemão, a partir do qual se fariam as cópias que o trariam até nós. Sendo um livro de divulgação, Stephen Greenblatt escolhe como foco exatamente Bracciolini, e toda a história em redor da redescoberta de “De Rerum Natura”, criando um livro de não-ficção romanceado, fazendo lembrar muitas vezes Umberto Eco e Dan Brown. O relato teve direito a Pulitzer e National Book Award, ambos na categoria Não-ficção.
Começar por dizer que a teoria — impacto de Lucrécio na Renascença — não é invenção nem descoberta de Greenblatt, é antes parte de uma corrente de estudos que se têm dedicado a compreender o modo como surgiu, desapareceu e voltou a aparecer na história o poema de Lucrécio. Assim no campo académico podemos aprofundar a discussão nos livros “The Cambridge Companion to Lucretius” (2007) editado por Stuart Gillespie e Philip Hardie e no livro “The Return of Lucretius to Renaissance Florence” (2010) de Alison Brown. Sendo este tipo de trabalho realizado a um nível interpretativo, como não podia ser de outro modo, já que não é possível aferir o que teria pensado, e até mesmo lido, cada um dos grandes nomes da Renascença, acaba sendo uma teoria dada a grande discussão. Ou seja, os estudiosos podem evocar Lucrécio em inúmeros autores, tendo alguns citado diretamente a obra Lucrécio, como acontece em Montaigne, mas não podem oferecer evidências concretas do impacto das ideias de Lucrécio nesses autores, e menos ainda em todo um movimento que demorou séculos a surgir, tendo o mesmo iniciado-se antes desta descoberta, com grandes obras como a “Divina Comédia” (1321) de Dante. Contudo, isso não faz da teoria algo menos interessante, relevante, e ainda menos apelativa. Na verdade, o conteúdo da mensagem de Lucrécio está completamente sintonizado com as razões que suportaram o surgimento da Renascença e nos daria depois o Iluminismo. Leiam-se as principais ideias subjacentes a “De Rerum Natura”, listadas por Greenblatt:
. “Everything is made of invisible particles”.
. “The elementary particles of matter-"the seeds of things"-are eternal.”
. “The elementary particles are infinite in number but limited in shape and size.”
. “All particles are in motion in an infinite void.”
. “The universe has no creator or designer.”
. “Everything comes into being as a result of the swerve.
. "The swerve is the source of free will."
. "Nature ceaselessly experiments."
. "The universe was not created for or about humans."
. "Humans are not unique."
. "Human society began not in a Golden Age of tranquility and plenty, but in a primitive battle for survival."
. The soul dies."
. There is no afterlife."
. “Death is nothing to us.”
. “All organized religions are superstitious delusions.”
. “Religions are invariably cruel.”
. “There are no angels, demons, or ghosts.”
. “The highest goal of human life is the enhancement of pleasure and the reduction of pain.”
. “The greatest obstacle to pleasure is not pain; it is delusion.”
. “Understanding the nature of things generates deep wonder.”
Sobre o conjunto das ideias aqui expressas, podemos dizer que formam o núcleo do Humanismo, ou seja da herança prestada pelo Iluminismo que nos daria a Revolução Industrial, e tal como diz Greenblatt, “o mundo moderno” que hoje conhecemos. Por isso, podemos até desconfiar do suporte científico à teoria, dos académicos das ciências literárias, mas não podemos deixar de lhe reconhecer sentido e mérito. O "swerve" era para Epicuro (autor grego seguido por Lucrécio, de quem restam poucos registos) o viés no movimento dos átomos, que originava variação e alteração, impossível de prever e que desse modo restringia a possibilidade determinística, criando o acaso, abrindo lugar ao livre arbítrio. Greenblatt, não perde a oportunidade de ligar esse "swerve", ao modo como "De Rerum Natura" desapareceu e voltou a surgir no nosso mundo por um grande acaso.

Posto isto, tenho de dizer que aquilo que mais me espantou, nos múltiplos ataques realizados a Greenblatt, não foram a propósito da fragilidade da teoria, mas essencialmente a propósito da linguagem, da falta de rigor, e nomeadamente falta de respeito pela Idade Média. Mas à medida que fui lendo os ataques fui percebendo que tínhamos ali algo além desse não reconhecimento. É sabido que nas últimas décadas tem existido um enorme movimento para recuperar a história da Idade Média e apresentar a mesma como um período que não terá sido tão mau como nos quiseram fazer crer no passado recente. Tenho de dizer que simpatizo com este movimento, porque por muito pouco que se tenha feito, fez-se, foram 1000 anos de vivência que nos trouxeram a um segundo grande milénio, por isso nem tudo pode ter sido mau. Contudo, quando começo a ver académicos a embandeirar excessivamente em defesa da Idade Média, fico de pé atrás. As evidências são tão avassaladoras que não é sustentável qualquer comparação mínima entre esse período, o anterior (Grécia e Roma antigas) e posterior (Renascimento).

Diagrama criado por Emil O. W. Kirkegaard, em 2017, a partir da obra historiográfica "Human Accomplishment: The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C. to 1950" (2003) em que Charles Murray lista cerca de 4000 individualidades que marcaram a nossa História, e no qual se vê o declínio da Europa, restando a história destes séculos nos ombros da China e Arábia. Para os que desconfiam da honestidade de Murray, podem sempre verificar os dados no Pantheon do MIT.

Tenho de dizer que os ataques promovidos em várias recensões do livro, em revistas internacionais de referência, são no mínimo ridículos, e só consigo pensar que quem o faz, o faz como forma de defesa da religião, nomeadamente do cristianismo. O que faz sentido, já que é à religião que temos de pedir contas por muito daquilo que seria toda aquela escuridão. Impressiona ver como o ano zero marca o declínio do Império Romano, ao que se sucederiam mil anos de completo vazio em toda a Europa. Se analisarmos listas dos feitos civilizacionais, da arquitetura à filosofia e ciência veremos a pujança dos Império Egípcio, seguido do Grego e Romano, ao longo de 3000 anos, e depois disso temos um ano zero em parece que tudo termina, e temos de esperar 1000 anos para ver novamente o ser humano a florir. Claro que Greenblatt põe o dedo na ferida, nem poderia ser de outra forma, pois olhando a lista de ideias de Lucrécio, expostas acima, torna-se muito simples compreender o que terá acontecido ao livro, e a razão porque terá praticamente desaparecido durante aquele período. Não posso deixar de me rir com a resposta que o próprio Greenblatt deixa como comentário a um desses ataques:
"I plead guilty to the Burckhardtianism of which John Monfasani accuses me.  That is, I am of the devil’s party that believes that something significant happened in the Renaissance.  And I plead guilty as well to the conviction, regarded by my genial and learned reviewer as ‘eccentric’, that atomism – whose principal vehicle was Lucretius’ De rerum natura – was crucially important in the intellectual trajectory that led to Jefferson, Marx, Darwin, and Einstein." (Reviews in History, 2012)
Compreendo que incomode os académicos, e não académicos, religiosos. Basta ver algumas das recensões que se encontram aqui no Goodreads ao próprio “De Rerum Natura”, o modo como se evocam os argumentos mais ridículos para destruir Lucrécio. E desse modo percebemos, como passados 2000 anos mudámos pouco e continuamos a debater-nos com os mesmos problemas. Por isso, não admira toda a polaridade política que grassa na América do Norte e do Sul, e que aos poucos tem procurado entrar na Europa. O conhecimento, a ciência, estão ao alcance de qualquer um, mas dão trabalho e não é são recompensas imediatas, falta-lhes o autoritarismo, a submissão e as hierarquias, falta-lhes estrutura que sustente as pessoas em grupos, o lado social e mesquinho. Nada interessa mais às pessoas do que fazer parte do grupo, de acreditar no mesmo que acredita o vizinho, mesmo sabendo que não é verdade, é preferível estar no mesmo barco, e ir ao fundo acompanhado, do que ficar sozinho.

Voltando a "Swerve", tenho de dizer que ao longo da experiência da leitura, e à medida que fui entrando mais e mais dentro de Lucrécio, a ponto de ter começado a ler o livro que já queria ter lido, mas tinha tido receio pela sua complexidade, fui sentindo que muito daquilo que me fez entrar no mundo da ciência, nomeadamente por via de Carl Sagan, já estava aqui, em Lucrécio. Respira-se um mundo feito de ideias, de argumentação e contra-argumentação, sustentado nas evidências e hipóteses. Um dos momentos mais altos surge perto do final quando Greenblatt introduz a reverência e carinho de Montaigne por Lucrécio e pensamos, sentimos, vemos, como o poema, o poema didático de Lucrécio, foi também responsável pela criação da forma do Ensaio. Como chegariam as suas ideias a Newton, Darwin e Einstein. Enquanto lia as palavras de Lucrécio só pensava no fascínio que tinha sentido recentemente ao ler Mlodinow ou Rovelli e no pouco de novo que estes afinal nos tinham trazido, ainda que sustentados em melhor ciência, face ao que Lucrécio e Epicuro anteciparam há mais de 2000 anos. Impressiona este andar em círculos, mesmo sabendo que o conhecimento verdadeiro só se constrói pela continua insistência e demonstração, porque perturba perceber o quanto é preciso lutar contra muitos daqueles que continuam a viver na obscuridade e a tudo fazer para que os outros com eles padeçam da mesma cegueira.

julho 02, 2017

“Pry”, artefacto multimédia (livro/jogo/filme)

Esta semana participei num júri de doutoramento na UALG a propósito de Literatura Digital, em que a obra “Pry” (2015) foi utilizada como objeto principal do estudo de caso da tese. Apesar da abordagem multimédia de “Pry”, a promoção, pelos seus criadores Danny Cannizzaro e Samantha Gorman, tendeu a apresentar o mesmo como um novo tipo de livro e um potencial modelo para toda uma nova literatura. No caso da tese, versando sobre Literatura Digital, seguiu-se essa abordagem no sentido de tentar trazer para a teoria da literatura novo conhecimento. Do meu lado pareceu-me que "Pry" deveria continuar a ser visto apenas como artefacto multimédia.


Devo começar por declarar que me movo na área da Multimédia desde há décadas. Comecei pelo cinema, mas o meu interesse pelos videojogos fez com que me interessasse pela tecnologia, o que acabou por me levar a interessar por todo o tipo de experimentos tecnológicos com o cinema, nomeadamente cruzamentos com os videojogos. Aliás isso mesmo viria a ser o centro da minha própria tese. Assim tendo para algum proteccionismo da área e suas obras.

“Pry” é uma obra de grande excelência, desde logo porque apesar de procurar inovar o modelo de livros digitais através da apetecível plataforma que é o iPad — tendo em atenção que a obra começou a ser pensada em 2012, pouco depois do lançamento da plataforma, e de todo o deslumbramento criado na sociedade com as novas possibilidades que se apresentavam para todo o domínio do impresso, dos livros à imprensa — não se deixou seduzir pela “magia” da tecnologia, tendo colocado acima desta as ideias e a comunicação.


Como substrato narrativo temos um soldado retornado do Iraque, 6 anos depois da primeira invasão em 1993, a lidar com as suas memórias, e com o modo como as encaixa no seu dia-a-dia, como se relaciona com as pessoas, age e reage a diversos conflitos e como tudo isso o afeta interiormente. Temos assim um universo narrativo facilmente reconhecível que é depois trabalhado em diferentes media — texto, imagem e vídeo — e integrados numa obra multimédia. A tecnologia presente rapidamente se esvanece, torna-se transparente para que o recetor se possa focar apenas e só na história e nas suas motivações para participar na mesma.

Em sentido lato, a obra multimédia não obriga a existência de interatividade na sua relação com o recetor mas obriga a uma interação entre media processada por computador, de outro modo a multimédia sem interação com o recetor não passaria de cinema. “Pry” não se apresenta como novo meio de comunicação, é uma obra multimédia, diga-se bastante próxima das obras do meio lançadas na vaga dos anos 1990. Aliás, como muitas das Apps que foram lançadas com o iPad que fizeram surgir todo um revisitar dos anos de ouro do CD-Rom Multimédia, agora com muito melhor qualidade vídeo, imagem e som, tudo num suporte imensamente móvel, sem necessidade de ratos ou teclados, criando por meio da interface de toque a impressão de uma interação quase-transparente.


Mas aquilo em que “Pry” se destaca relaciona-se ainda assim com a discussão dos media, pela estrutura narrativa interativa desenhada para dar conta dos estados de consciência da personagem que automaticamente nos coloca frente a frente com a discussão das capacidade expressivas específicas dos meios: literatura e cinema. Assim: a literatura é reconhecida pela supremacia em dar a conhecer o não-consciente dos seus personagens, algo que foi extremamente enfatizado por movimentos como o modernismo e autores como Joyce e Woolf, naquilo que ficaria conhecido como “fluxo de consciência”; por outro lado o cinema apresenta dificuldades em dar conta desses estados interiores dos seus personagens, pela simples razão de que não pode deixar de se focar no visível, tendendo a centrar-se na consciência e suas ações externas realizadas pelos personagens.

Storyboard da interação, na qual se pode perceber como o gesto de abrir pinça, permite aceder à realidade visível (olho), e o gesto de fechar pinça, permite aceder ao não-consciente. 

“Pry” é assim uma obra multimédia que apesar de não inovar o meio, apresenta uma interativdade prenha de sentido. A relação entre a experiência literária e cinematográfica faz-se destacando a relevância do consciente e não-consciente para a compreensão dos personagens e da história, acontecendo apenas graças à interatividade. Ou seja, os autores não se deixaram levar por uma abordagem simplista de dar a experienciar cada uma das camadas da consciência por meio de cada um dos media (literatura para o não-consciente e filme para o consciente), antes o fazem de forma completamente transmediada, passando a ação de diferenciação entre os planos de consciência para a interatividade, empoderando o interactor, tornando-o responsável por aceder às camadas de consciência em função das partes da história necessárias à compreensão do arco dramático completo.

Trailer de "Pry" (2015)

Apesar de todo este meu posicionamento, acredito que as terminologias artísticas são tudo menos exatas e as suas fronteiras nunca estão encerradas. Na verdade a AppStore começou por catalogar "Pry" como Livros, só passados alguns meses é que resolveu mover a aplicação para a secção de Jogos. Contudo, nenhuma destas categorias serve o objeto bem. "Pry" é livro e mais do que livro, é jogo e mais do que jogo, é filme e mais do que filme, por isso talvez tentar reduzi-lo a qualquer uma dessas áreas seja simplesmente ingrato para com todo o trabalho multidisciplinar envolvido e o resultado final, um híbrido que espelha o fundamento da transdisciplinaridade que é no fundo o desígnio da multimédia.

fevereiro 19, 2017

Memorizar requer esforço e não é intuitivo

"Make it Stick" (2014) é um livro de divulgação científica que procura dar a corpo a um conjunto de teorias desenvolvidas por dois professores de psicologia (Henry L. Roediger e Mark A McDaniel) que ao longo de várias décadas estudaram o modo como criamos memórias. O terceiro autor (Peter C. Brown) é especialista em storytelling, e contribuiu aqui especificamente para o desenho da apresentação dos resultados desse estudo. A ideia central de toda a teorização que percorre todo o discurso apresentado no livro é o da Recuperação de Memórias (“Memory Retrieval”), de que já aqui tinha falado a propósito da leitura dos Cânones. Uma técnica suportada por dezenas de estudos empíricos que demonstram a sua relevância e pervasividade no largo espectro da aprendizagem. O conceito assenta na lógica biológica que regula a construção de memórias a nível neuronal.


Assim, precisamos de primeiro compreender que as memórias que possuímos são conjuntos de associações de nós neuronais, de ligações entre neurónios. Quando experienciamos algo — ao vivo, lendo, vendo, ouvindo — o nosso cérebro produz novas ligações entre neurónios que dão conta de imagens mentais que nós chamamos quando queremos recordar alguma coisa. Ou seja, quando jogamos xadrez e pegamos no cavalo, o nosso cérebro recupera a ideia de que este apenas se pode movimentar em L, e deste modo ajuda-nos a realizar a ação de movimentação da peça no tabuleiro. Nós podemos recordar a imagem mental do movimento em L, porque anteriormente a isso nos foi ensinado — explicado em palavras, ou visto em ação. A questão que se coloca, é, como é que nos lembramos que o cavalo se deve mover em L? E é a esta questão que o livro responde.


Não basta alguém explicar-nos em palavras ou atos, como se move o cavalo em L. Para que no fim-de-semana seguinte a ter aprendido a jogar, eu possa saber, ou seja aceder à memória do movimento do cavalo de xadrez, eu preciso de “exercitar” essa mesma memória, preciso de a recuperar várias vezes durante a semana. É importante que dentro da minha cabeça eu continue a “chamar” a memória, para manter vivas as relações de nós neuronais que edificam a imagem mental do movimento do cavalo. Se ao longo da semana não o fizer, as ligações neuronais criadas aquando da explicação de como se joga acabam por se desfazer, ou seja, acabarei por simplesmente esquecer.

Se o chamar da memória é importante, existe algo ainda mais importante, o modo como é chamada, ou dito de forma mais literal, recuperada. “Make It Stick” dedica-se fundamentalmente a explicar esse processo de recuperação, explicando os modos como podemos tornar as memórias mais fortes e sustentáveis no tempo. E esses modos, os melhores, não são aquilo que muitos de nós esperávamos, não são aquilo que nos ensinaram durante décadas de escola, não são nem atrativos nem intuitivos. O melhor resumo surge na explicação de uma professora, quase no final do livro:
"Eu não consigo dizer-lhe quantas vezes os alunos vêm ter comigo, e me mostram os seus livros com sublinhados e destacados em quatro cores diferentes. Então eu digo-lhes: "eu posso dizer que vocês têm trabalhado imenso e que realmente querem ser bem sucedidos nesta cadeira porque vocês tem azul e amarelo e laranja e verde marcados nos vossos livros”. Mas é também quando tenho de lhes dizer: “que todo o tempo gasto com o livro depois da primeira leitura foi um desperdício.” E eles dizem: "Como é isso possível?" Ao que respondo: "O que vocês tem que fazer é: vocês leem um pouco, e depois têm que se testar a vós mesmos”, mas eles não sabem como fazer isso.
Então eu modelo as aulas para que possam fazer isso mesmo. A cada cinco minutos, ou assim, eu jogo uma pergunta sobre o material que acabámos de falar, e eu posso vê-los a começar a olhar para as suas notas. Mas eu digo: "Parem. Não olhem para as vossas anotações. Basta um minuto para pensarem sobre isso vocês mesmos.” Eu digo-lhes que os nossos cérebros são como uma floresta, e que a memória está lá nalgum lugar. Vocês estão aqui, e a memória está ali. Quanto mais vezes vocês fizerem o caminho até essa memória, mais evidenciado ficará esse caminho, de modo que na próxima vez que vocês precisarem dessa memória, vai ser muito mais fácil encontrá-lo. Mas, assim que vocês olharem para as vossas notas, vocês vão curto-circuitar esse caminho. Vocês deixam de explorar o caminho, porque esse já vos foi dito. "
Mary Pat Wenderoth, Professora de Biologia, Universidade de Washington
Criar memórias é criar caminhos e exige esforço, repetição e dedicação. Ler um livro, ver um filme, assistir a uma aula são apenas pontas de icebergues, existe toda uma quantidade de trabalho de construção da memória que cada um precisa de fazer, que mais ninguém pode fazer por nós. E o que estes estudos nos vêm dizer é ainda mais dramático, já que não basta deixarmo-nos expor repetidamente à informação. Ou seja, reler e reler um texto, ou rever e rever um filme, ou assistir a todas as aulas. Se não existir um trabalho de chamar a memória que ilumine o “caminho” até ela, o simples facto da informação nos ser apresentada não ajuda a solidificar a memória em si, ainda que contribua para durar até ao dia seguinte, podendo contribuir para a falsa ideia de que já memorizámos.

Deste modo o que Henry L. Roediger e Mark A McDaniel nos dizem é que as as práticas denominadas de “marranço” que continuam a ser professadas desde sempre e até aos nossos dias, não funcionam. Os vários estudos realizados demonstram que os alunos que realizaram pequenos testes várias vezes depois de uma leitura única, face aos que releram várias vezes o mesmo material, são imensamente mais efetivos a recordar a informação.

Esta abordagem vem assim uma vez mais apoiar as práticas sustentadas em técnicas interativas, ou de jogos, de entre os mais famosos, os conhecidos Quizzes, mas quase todos os outros modelos. Aliás, é exatamente este o modelo proposto pela Escola Virtual em Portugal, que pega nas matérias escolares, e cria cenários hipotéticos que questionam os alunos sobre as matérias. Não querendo fazer aqui defesa promocional da plataforma, tenho de dizer que é excelente, porque um dos maiores problemas que um aluno enfrenta no seu estudo é a falta de uma base de perguntas sobre a matéria. Podendo ter uma plataforma na qual essas perguntas estão disponíveis e com claro feedback, algo essencial a uma efetiva aprendizagem, fica apenas a faltar o investimento do esforço do aluno.

Mas não queria quedar-me pelos testes e quizzes, mais ainda tendo sido eu desde há muitos anos um acérrimo crítico de exames e testes escritos. Aceito que eles servem a comparação, nacional e internacional, necessárias, mas não gosto particularmente do método de avaliar alguém por perguntas escritas, prefiro claramente abordagens projetuais, ou reflexivas e elaborativas como a escrita de ensaios. As razões porque não gosto começam desde logo pela pressão exercida, já que o teste só pode acontecer num momento concreto, e é de possibilidade única, ora o ser humano aprende essencialmente por imitação e tentativa e erro, que são formas de aprender no tempo, iterativas e interativas. Por outro lado, os testes condicionam a aprendizagem para a matéria em modo afunilado. Ou seja, aquilo que os alunos fazem enquanto estudam, releiam ou façam quizzes, é memorizar factos para poder debitar, quando aquilo que nós queremos é que a pessoa memorize esses factos para os articular com outros, para que construa e não apenas recite. Não é por acaso que Henry L. Roediger e Mark A McDaniel começam por enfatizar fortemente os testes, e os elevam a ferramenta de eleição para o estudo e aperfeiçoamento do ato de memorização, mas quando mais na parte final do livro começam a tentar aplicar este modelo à educação, acabam por citar a Taxonomia de Bloom (ver imagem).

Taxonomia de Bloom, revisão de 2001

Contudo, não podemos deixar de reconhecer que o objetivo deste livro, ao contrário do trabalho de Bloom, não são as práticas educativas mas o dar a conhecer de ferramentas e processo que nos permitem memorizar. O que na verdade, e olhando à pirâmide de Bloom, temos de aceitar como vital para tudo o resto. Não é possível criar sem deter conhecimento sobre o que se pretende criar. Assim como todas as restantes categorias que delineiam a nossa inteligência, todas precisam da base, da presença de memórias de factos, que possam ser recordadas no momento certo para agir.


Assim tenho de dizer que o livro vai mais longe do que a simples defesa do quizzing. Os autores apresentam múltiplas técnicas no livro, que se podem encontrar resumidas no último capítulo. Dessas, as três primeiras dirigem-se claramente ao quizzing, mas são passíveis de ser adaptadas a qualquer outro modelo, sendo que são as mais efetivas no processo de memorização: Recuperação, Espaçamento e Intercalação.

1. Recuperação 
Práticas de recuperação de informação por meio de testes de perguntas (quizzing). Em vez de reler a informação, ler uma vez, e depois realizar testes sucessivos sobre a matéria. Em vários estudos realizados, os grupos que relerem esqueceram 50% do que aprenderam, enquanto que os que realizaram apenas uma leitura, seguida de testes, investindo o mesmo tempo, esqueceram apenas 13%.

2. Espaçamento 
Espaçar as sessões de recuperação, deixando espaço entre estas para esquecer. Os autores não referem, mas isto está baseado nas questões cognitivas da Atenção. O facto de espaçarmos a aprendizagem permite que o foco da atenção sobre a informação se exerça mais vezes, uma vez que o foco da atenção não se sustenta muito tempo sobre o mesmo tipo de estímulos.

3. Intercalação
Alternar os temas em que se está a trabalhar. Contra-intuitivo, porque torna a aprendizagem mais difícil, mas é exatamente por a tornar mais difícil que se torna mais eficaz em termos de memorização. Os autores apresentam vários estudos que demonstram claramente a eficácia da intercalação, que se pode fazer entre disciplinas, ou entre matérias de uma mesma disciplina.


Indo para além dos testes de perguntas, a dupla de psicólogos segue Bloom e apresenta práticas muito menos coladas à voragem métrica dos testes, mais adaptadas aos domínios que falava acima de projeto e ensaio, para o que propõem então outras três técnicas: Elaboração, Geração e Reflexão

4. Elaboração
Tentar encontrar níveis adicionais de significado no material novo. No fundo, estamos a construir novas memórias com base em antigas, o que faz com que os caminhos das antigas ganhem novas ramificações, e se fortaleçam.

5. Geração
Tentar responder a questões ou resolver problemas antes de olhar para as respostas. Aqui fala-se de aprendizagem experimental, em que seguimos o processo de tentativa e erro, procurando o modo correto de ação a partir das memórias detidas.

6. Reflexão
Uma combinação das práticas de recuperação e de elaboração que adicionem camadas ao material de aprendizagem. Tentar questionar-nos a nós mesmos.

São apresentadas mais duas técnicas, a sétima denominada de "calibração" dos viés cognitivios, mas que talvez os autores devessem ter chamado de simples Feedback. Não é possível construir aprendizagem sem feedback, sem o efetivo retorno tanto aos quizzes, como a um projeto ou ensaio, o aluno não consegue crescer. Já a última técnica, diz respeito às abordagens mais esotéricas das "mnemónicas", muito interessantes, mas claramente menos relevante, por conduzirem o foco demasiado para a memória como mero fim, em vez de meio para aprendizagem.

Para fechar, aquilo que o livro tem a oferecer pode ser lido num artigo de dez páginas. Aliás, tudo está resumido no último capítulo, ou quase aqui no meu texto. Apesar disso, o livro não é grande e lê-se bem, está bem escrito e permite criar um enquadramento muito interessante para a aprendizagem dos conceitos, sem se tornar fastidioso.


Textos potencialmente relacionados:
O Código do Talento, 2014
Cognição e biologia na base do sucesso, 2013
Aprender, esquecer e memorizar os cânones culturais, 2016

abril 15, 2014

storytelling "noir"

"Francis" (2013) é uma curta de animação que podia ser de imagem real, capaz de criar toda uma atmosfera particularmente cativante e envolvente do tipo noir. Todos os elementos de animação, modelação, luz, música, voz off funcionam em total sintonia e ao serviço da narrativa, carregando o espectador ao colo, colocando-o bem no centro da acção, imerso, sem se conseguir mexer, à espera de saber o que irá acontecer.



A história surgiu de um concurso lançado por Ira Glass no programa de rádio ‘This American Life’. Uma das histórias vencedoras foi “Francis” escrita por Dave Eggars, que depois de lida no programa gerou tanto interesse que Eggars resolveu avançar para a transformar em filme com a ajuda de Richard Hickey. Na realidade, a história de Eggars está tão bem estruturada que quase só a sua dramatização audio seria suficiente para nos agarrar. Aliás "Francis" segue em toda a linha aquilo que Glass referiu numa entrevista a propósito dos aspectos criativos do storytelling.

"Francis" (2013) de Richard Hickey

dezembro 09, 2013

Através do tempo, vistos pelo cinema

Poderoso. Mais uma vez Kogonada a abrir os nossos horizontes cinematográficos, a ampliar os sentidos daquilo que vimos, ouvimos e retemos. Desta vez Kogonada centrou-se sobre o trabalho de Richard Linklater, nomeadamente sobre a sua magnífica trilogia "Before…" que ainda há pouco tempo aqui analisei. Em contra-ponto com a minha análise, e a da grande maioria, Kogonada verbaliza mais uma vez a sua análise através do audiovisual, e não do mero texto. Kogonada é simplesmente brilhante, e a continuar assim poderá vir a tornar-se numa das mais importantes referências da crítica cinematográfica. Porque é todo um novo mundo para a crítica, já que se realiza a partir do mesmo meio que critica, e isso satisfaz-me imensamente, porque vai totalmente de encontro ao que venho defendendo em termos de literacia.


Em "Linklater // On Cinema & Time" (2013) Kogonada resume em 8 minutos o âmago da trilogia "Before...", trabalhando outros títulos de Linklater como "Slacker" (1991) e "Waking Life" (2001). Mas mais do que isso, aponta um caminho para compreendermos melhor porque nos ligámos tanto ao três filmes dessa trilogia. É algo que verdadeiramente não se pode explicar em texto, e Kogonada faz-nos o favor de o explicar em imagens e sons. Os sentimentos que percorrem a trilogia "Before...", apesar de assentarem no diálogo apenas, parecem não se suportar quando expressas em mero texto. Aqui temos o movimento, o som, a música, as vozes e os seus timbres, a linguagem corporal, tudo num misto capaz de transmitir uma ideia profunda de contemplação do tempo. Do tempo que passou e do que ainda nos resta, o tempo e nós...
"If cinema is also the art of time passing, then Linklater is proving to be one of its most actively engaged and thoughtful directors. Unlike other filmmakers often identified as auteurs, Linklater’s distinction is not found on the surface of his films, in a visual style or signature shot, but rather in their DNA, as an ongoing conversation with cinema, which is to say, a conversation about time passing." [Texto de Kogonada na Sight & Sound]

"Linklater // On Cinema & Time" (2013) de Kogonada

maio 03, 2013

"To the Wonder" (2012), fluxo do maravilhamento

Parti com a ideia de que não seria tão bom como Tree of Life (2011), não só porque Tree é uma espécie de projecto irrepetível, mas também porque percebi que alguma crítica não tinha ficado muito satisfeita com Wonder. Na verdade Wonder é mais focado, mais específico, não pretende enquadrar toda a "árvore", quer apenas focar-se no movimento de uma das suas folhas, tentando compreender o seu movimento.



Wonder é um filme sensorial, a sua comunicação é feita quase exclusivamente a partir do que mostra, e pouco a partir do que diz. A música incita, os personagens dançam, o espaço cola-nos à realidade estática e rígida do mundo, enquanto a câmara se move tão fluída como a própria vida. É isto Wonder, um deixar-se maravilhar pela “insustentável leveza” da vida, pela sua variabilidade, mutabilidade, elasticidade, pela total inconstância do que nos espera, sem previsões nem antevisões.

Wonder maravilha-nos porque usa a caneta de escrita do cinema, a câmara, e a singularidade do seu tempo, a montagem, para exactamente nos dar a ver o que é o maravilhamento. São pouquíssimos os planos estáticos, a edição é muito rápida, mas quase nem se sente porque se entrecortam planos de movimento de câmara dóceis e brandos, que transportam consigo a inconstância, criando um puro fluxo entre o espectador e a imagem. Mas todo este movimento perceptivo que o filme ganha, não ultrapassa nunca a linha do espetáculo, do chamar a atenção sobre si, do fim em si mesmo. Malick cria o fluxo, mas fá-lo de uma forma tão contida, quanto os sentimentos que percorrem as peças centrais da narrativa. Ao longo do filme sentimos um vai e vem constante, não só entre países, não só entre pessoas, sentimentos e emoções mas também e entre razões e lógicas. E é graças a esta espécie de espontaneidade contida da visualização que tudo isso ganha um significado congruente e coerente.



O espaço dá-nos a entender que existe algo ali, algo que não muda, mas os espaços apresentam-se vazios, seja nos EUA ou em França. Somos brindados com espaços amplos enquadrados de forma majestosa, filmados sob a luz da "hora mágica" (amanhecer e entardecer), variando entre o sol cheio de verão e o pleno cinzento de inverno. Mas a ausência de vida em redor, leva-nos a acreditar que o espaço não é aquele, que este é apenas uma expansão do verdadeiro espaço do filme, os corpos, a sua comunicação não-verbal, é aqui que se centra a espacialidade de Wonder. Os próprios espaços interiores são tão desprovidos de vida quanto os exteriores. Se na rua não existem quase pessoas, em casa não existe quase mobília, porque a mudança é uma constante, e os sentimentos estão em fluxo, não param, sentem e deixam de sentir, mas continuam a voltar atrás para a apanhar de novo o fluxo antes conhecido, apenas para descobrir, que o que antes se teve, já não volta. O fluxo é um contínuo, sempre em movimento, sempre em mutação, o fluxo é o maravilhamento, é a vida.


To the Wonder (2012) de Terrence Malick

maio 02, 2013

Tomb Raider, problemas da usabilidade nos videojogos

É bom, mas é só isso mesmo. Em termos de jogabilidade e estrutura narrativa consegue manter-nos conectados ao longo da extensa missão (~20h), já a história deixa imenso a desejar. Toda a experiência é bastante fluída e quase sempre em alta rotação, nunca se sente a monotonia, assim como poucas vezes se sente a frustração, na verdade existe pouco espaço para a contemplação, mas esse também não é o propósito de uma aventura.


Em relação ao tema, percebo agora porque o jogo foi catalogado para maiores de 18, só não percebo a necessidade deste tema. A história centra-se nas origens de Lara Croft, procura explicar como é que ela se transformou numa guerreira salteadora de túmulos arqueológicos. Saltar daqui para a necessidade de termos gigantescas extensões carregadas de esqueletos e corpos ensanguentados espalhados pelo chão, não vejo a ligação. Claro que se pode dizer que isso a ajudou a tornar-se mais imune à violência, mas é um exagero visual, um dos maiores festins de gore a que já assisti. Chegando ao final, fico na dúvida se estive a jogar Tomb Raider ou Silent Hill. Era desnecessário, e o jogo teria tido muito mais a ganhar se se tivesse mantido na faixa dos 12 anos. Trabalhar um icon como Lara Croft e vedá-lo a uma imensidade de jogadores não me parece que faça o menor sentido. Os criadores podem ter pensado que o seu target tem agora mais de 30 anos, o que é verdade, mas Tomb Raider não devia ser apenas mais um jogo que segue as tendências, devia antes marcar as tendências.



No campo da estrutura o jogo assemelha-se bastante a Uncharted 3 (2011), e pouco a Uncharted 2 (2009). A narrativa é clara, tal como na série Uncharted, são utilizadas cutscenes para fazer passar os nós centrais da narrativa, e as lutas são mais dirigidas ao foco narrativo do que muitos outros jogos. No entanto ao contrário de Uncharted 2, existem poucos momentos inesquecíveis, seja de jogabilidade, dificuldade, beleza visual ou evolução da história. Por outro lado tal como em Uncharted 3, existe um excesso de repetição de lutas. Estas sim vão progredindo em dificuldade, mas uma dificuldade caótica, pouco estruturada e pouco dada à melhoria das competências do jogador. Sentimos que se melhora apenas a IA dos guerreiros e que somos jogados no meio da arena, numa tentativa de bloquear o avanço e assim fazer render mais tempo a jogabilidade. Apesar de contar com uma componente de RPG em que podemos ir melhorando as competências de Lara Croft em três frentes distintas, na verdade depois não sentimos o verdadeiro reflexo destas melhorias na nossa interacção com o jogo. Percebemos que a Lara vai ficando mais forte, mais ágil, mais competente, mas não nós enquanto jogadores.



Em relação à navegabilidade espacial a equipa de Darrell Gallagher conseguiu criar um jogo extremamente fluído, são raras as vezes em que nos sentimos bloqueados. Se por um lado gostei, por outro lado senti algum desconforto. Não por não ficar bloqueado, mas porque percebi porque não aconteciam esses bloqueios. O jogo está completamente inundado de marcas visuais que nos guiam durante toda a navegação*. Ao ponto do sistema implementado de ajuda, denominado de "Survival Skills", se tornar quase dispensável durante a maior parte do jogo. O que podemos ver aqui é um apuradíssimo trabalho de estudos de usabilidade, e foi exatamente por isso que me senti incomodado. Senti que estava a jogar um produto, e não um artefacto. Senti que estava a jogar uma experiência que já não era fruto da visão autêntica de um criador, mas que era o que tinha restado depois de centenas de testers terem passado a pente-fino toda a interatividade de navegação. Em termos metafóricos, é como comer um gelado industrial tão límpido e perfeito, que sabe igual, em qualquer lugar, e para qualquer pessoa, ao contrário do gelado artesanal que contém ainda vestígios da polpa de morango, diferente de copo para copo. As experiências constroem-se no tempo, e precisam de individualização para se tornarem memoráveis, de outro modo, estamos apenas a repetir doses do que já conhecemos, até que elas simplesmente deixem de nos emocionar.

*Marcas brancas que indicam que se deve subir ali

Este é o problema da aplicação da usabilidade nos videojogos. Os videojogos, podem até enquadrar-se no mundo do software, mas não podem ser vistos como mais uma aplicação, um produto. Os videojogos são obras artísticas, que comunicam uma ideia pessoal, uma forma de ver o mundo. O testing é importante para garantir a ausência de bugs, mas passar daí para a limpeza das mecânicas da jogabilidade, procurar aperfeiçoar a interacção de um jogo por via do testing, é destruir o que faz deste um videojogo, o que os torna autênticos e únicos.

março 26, 2013

o poder do óleo na animação

Nightingales in December (2012) é a mais recente animação de Theodore Ushev, que já passou pelo Cinanima e pela Monstra do ano passado. Nightingales in December baseia a sua estética numa espécie de "expressionismo alemão" animado, suportado pela força expressiva da pintura a óleo. Theodore Ushev é ilustrador, designer gráfico, artista multimédia e cineasta, nasceu na Bulgária, e está radicado no Canada desde 1999, onde trabalha desde então para o NFB e onde criou alguns dos seus trabalhos de cinema de animação mais premiados.




Esta técnica de criar a animação a partir do movimento de pinturas rápidas, sobrescurecidas e que por vezes se assemelha a algum rotoscoping, é algo que já vem de trás, do seu filme anterior Lipsett Diaries (2010), um filme que ganhou também imensos prémios, e que pode ser visto no site da NFB, mediante pagamento. Sobre esta técnica Ushev diz-nos em entrevista,
"a razão pela qual fiz o meu filme com pintura, foi porque envolvendo cada frame num expressionismo estrito, seria a melhor forma de expressar as suas emoções." [fonte]
E é exactamente isso que podemos sentir neste Nightingales in December (2012), uma força emocional tremenda emanada das imagens que se sucedem, que se movem e entrecortam ao ritmo da música de Spencer Krug e seguem no desvelamento da sinopse escrita pelo autor,
"This metaphorical surrealist tale is an allusion. Nightingales in December is a trip into the memories, and the fields of the current realities. What if the Nightingales were working, instead of singing and going south? Is the innocence the only savior of birds songs? There are no Nightingales in December... What is left, is only the history of our beginning, and our end."
Nightingales in December (2012) de Theodore Ushev

3d sob uma camada artesanal

O 3d definitivamente está a dar um novo salto estético em termos visuais. Já me tinha dado conta disto no filme Fat (2013), mas agora Folksongs & Ballads, da Supinfocom, que já é de 2011 mas só agora chegou à rede, faz-me acreditar ainda mais nesta convicção. Aliás faz mesmo parecer a técnica de Paperman quase desnecessária. Sabemos que isto é 3d, mas toda a ilustração, texturização e renderização faz esquecer esse facto através da beleza que emana.


Existe neste filme quase que uma obssessão na fuga à simetria, tão típica do filme 3d, originária da produção matemática pelo software. Podemos ver como quase todos os objectos se apresentam carregados de distorção na forma, conferindo-lhe uma marca de autenticidade do artesanal. As próprias texturas, as mais relevantes, são pintadas à mão e depois aplicadas sobre os modelos. Todo o filme respira a artesanto, a tradicionalidade, o que entra em total sintonia com o tema do próprio filme. E é algo que torna impossível não nos impressionar, no sentido de compreendermos do que é capaz o 3d.

É um filme de estudante, criado por Mathieu Vernerie, Pauline Defachelles e Rémy Paul, e nesse sentido aceita-se que algumas, muito poucas, das imagens tenham escapado em parte a este processo de tornar mais artesanal. Existem alguns objectos descuidados aqui e ali, mas isso não invalida nem menoriza em nada a excelência do trabalho desta equipa de estudantes.



A qualidade da curta não se limita aos aspectos técnicos visuais, o filme é em si uma pequena pérola pela forma como obedece a um ritmo lento em consonância com o tema, criando toda uma atmosfera que nos ajuda a transportar para o universo representado em cena. O design dos personagens não é o melhor do filme, ainda assim o personagem principal é uma delícia, convincente e capaz de nos fazer sentir que vive ali, naquele mundo desolado.

Folksongs & Ballads (2011) Mathieu Vernerie, Pauline Defachelles, Rémy Paul

março 21, 2013

"Hitchcock" e Alma Reville

Hitchcock (2012) não foi muito bem recebido pela crítica essencialmente porque todos esperavam o clássico Biopic com dados sobre os feitos e as visões artísticas de Hitchcock. Mas o filme centra-se num momento muito específico da sua carreira, e pior do que isso discute mais a sua humanidade do que a sua arte. Talvez por isso mesmo eu o tenha adorado.

"Aliás como se pode ver pelo poster, ao fim de décadas, podemos ver uma imagem icónica de Hitch em que este não é apenas uma silhueta do homem isolado, o único criativo."

O filme é fascinante porque traz ao conhecimento público uma realidade que já se ia discutindo em termos académicos, a força e a importância de Alma, a sua primeira e única mulher durante 54 anos. Muito do que se sabe foi trazido para o conhecimento público através de um livro da filha de ambos, Pat Hitchcock O'Connell, Alma Hitchcock: The Woman Behind the Man (2004). Na realidade o filme funciona como a verdadeira encarnação do ditado "por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher". Mas é mais do que isso porque Alma não foi apenas um suporte emocional, Alma esteve verdadeiramente presente como colaboradora criativa no trabalho de Hitchcock. Julgo que isso incomodará mais as pessoas, mas como ela diz a uma certa altura no filme, eles conheceram-se no mundo do cinema, e partilhavam a mesma paixão pela arte. Aliás só isso explica que Psycho (1960) tenha sido levado por diante, produzido com as economias do casal.

Alfred Hitchcock e Alma Reville

Muito interessante verificar que a carreira de Alma em termos de registo apareça apenas durante a fase inglesa de Hitchcock. Porque na verdade Hitch e Alma funcionavam como uma verdadeira dupla criativa, ele na visão geral, na escolha das grandes ideias e realização, e ela no detalhe, na afinação de toda a ideia do guião à montagem. Impressiona conhecer os promenores em que ela foi fundamental na criação do cinema de Hitchcock, porque não bastam grandes ideias, a arte é feita nos detalhes. Por acaso Alma foi a sua mulher, mas podia ter sido outra pessoa qualquer, porque no fundo a arte cinematográfica é uma arte profundamente colectiva.

Alfred Hitchcock e Alma Reville, na fase inicial em Inglaterra

Só é pena que Alma na sua condição de mulher do grande artista, tenha escolhido resignar-se à sua sombra. Embora perceba, e como ela diz a uma determinada altura, "não estou preocupada que todos saibam, só me interessa que quem me importa saiba". Na verdade ela poderá não ter escolhido, porque o apelo de um homem misterioso para os mass media era e continua a ser muito maior, do que o de uma dupla marido e mulher. Isso fica para a história, para a análise do passado, e é o que este filme faz muito bem. Aliás como se pode ver pelo poster, ao fim de décadas, podemos ver uma imagem icónica de Hitch em que este não é apenas uma silhueta do homem isolado, o único criativo.

Helen Mirren como Alma Reville e Anthony Hopkins como Alfred Hitchcock

Quanto à arte de Hitchcock, o filme acaba por se focar sobre o seu poder de controlo dos produtores. Perspicaz e muito inteligente não apenas na manipulação das audiências mas de toda a máquina financeira e censória que circundava o cinema. Hitchcock foi verdadeiramente brilhante não apenas na sua capacidade criativa de escolher e realizar os melhores filmes, mas também na sua capacidade para liderar e levar até ao final os seus projetos. Como disse uma vez Orson Welles, fazer cinema, é passar 98% à procura de dinheiro para o fazer, e 2% do tempo a fazê-lo. Hitch fez-me lembrar Orson Welles, assim como Steve Jobs. Em termos obsessivos e com a uma enorme capacidade para fazer com que todos o seguissem, desde os financiadores às massas.

março 20, 2013

"The Cave", inteligente mas pouco emocional

The Cave (2013) é um jogo de design inteligente que apela muito mais à componente intelectual do que à emocional. Passamos a maior parte do tempo a resolver puzzles e enigmas e demasiado pouco tempo a apreciar os aspectos sociais e psicológicos dos nossos personagens.


The Cave é um jogo de género, encaixa no modelo de aventura gráfica, no qual todos os objetos têm um propósito, e em que a combinação de um ou mais objetos nos pode conduzir à satisfação final. Mas perde neste campo por ter pouco para oferecer como história. Temos bastantes personagens (7), podendo jogar com apenas três de cada vez, mas ficamos a saber muito pouco sobre eles, apesar de colecionarmos itens ao longo do jogo que dizem respeito exatamente às suas narrativas. Faltou claramente uma capacidade para interligar todos os elementos e dar vida dramática e emocional aos seus propósitos. A caverna é aqui o narrador e quem conduz, de forma muito pouco ortodoxa diga-se, mas em linha completa com o espírito de Ron Gilbert e Tim Schaffer e os seus jogos anteriores. Aliás é este condimento de uma caverna sem escrúpulos morais que serve para atenuar o nosso sentimento de vazio emocional.

Em termos de design, o jogo é brilhante, no sentido em que temos sete personagens, e podem funcionar todas com todas num sentido de interdependência e colaboratividade. Ao longo do jogo dei por mim imensas vezes a questionar-me sobre a quantidade de interligações intrincadas que existem entre cada uma e que permitem que o jogo funcione. O que só por si deverá ter sido a maior dor de cabeça do desenvolvimento de todo o jogo. Aliás muito provavelmente à custa de desenvolver algo assim complexo para um pequeno jogo, terá acabado por se ficar por isso mesmo, por um virtuosismo de design, deixando a experiência de jogo um pouco ao abandono. Como só podemos jogar com 3 personagens de cada vez, passar por todos os níveis implica realizar o jogo mais do que uma vez, já que alguns dos níveis estão reservados a alguns dos personagens. A razão para isso está no facto de cada um estar dotado de determinadas capacidades, e que só essas permitem atravessar determinados níveis. Fica aqui o mapa de todos os níveis.

Mapa dos níveis de The Cave (2013). A laranja estão os níveis que podem ser visitados apenas se na posse de cada um dos 7 personagens. (Imagem de Games Radar)

Finalmente a arte de todo o jogo é adorável, e em certa medida acaba por em conjunto com o design compensar a nossa experiência. Os personagens são belíssimos, individualizados e autênticos, e os cenários fazem-nos desejar por mais e mais. Apesar do esforço de resolução de cada puzzle, a atmosfera estética criada mantén-nos interessados pelo que se deverá suceder a seguir e até ao final. Cada área é mais detalhada e trabalhada que a anterior. Por outro lado a atmosfera pesada própria de uma caverna entra constantemente em choque com o humor amoral da própria caverna o que contribui para a nossa gratificação e imersividade. Não sendo um jogo de excelência, apresenta enormes atributos técnicos.







Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

março 19, 2013

Coreografia e velocidade na primeira-pessoa

Insane Office Escape 2 (2013) de Ilya Naishuller é simplesmente uma das melhores curtas de ação realizadas para a rede. Temos essencialmente muita velocidade, muitos VFX, muito parkour, e tudo filmado em câmara subjectiva, ou seja primeira-pessoa. Só um aviso, o filme é extremamente violento, por isso não aconselhado a menores, nem a pessoas mais sensíveis.


Como se pode ver pelo título este é o segundo filme realizado por esta equipa, com o mesmo tema e a mesma forma. O primeiro Insane Office Escape (2011) surgiu há dois anos e conseguiu mais de 2.5 milhões de visualizações no YouTube, acredito que este vá superar, porque a qualidade técnica subiu muitíssimo. Não é apenas a velocidade, mas os efeitos são dignos de qualquer filme de Hollywood. O que mais impressiona em tudo isto é mesmo a vertigem da velocidade imprimida pela montagem inteligente e pela força da câmara subjetiva. Insane Office Escape 2 estimula sensações perceptivas a que só estamos habituados quando andamos nas atrações dos parques de diversões, tal é a intensidade imprimida. Além da componente perceptiva da forma, impressionou-me muito toda a componente coreográfica do filme, é de elevada qualidade no que toca a criação de realismo nas cenas de ação, funcionando ainda numa sincronização perfeita com os efeitos especiais. Ficamos agora à espera do making of.

A narrativa é básica, mas interessante, porque não temos violência pela violência apenas, existe um propósito concreto, um objetivo, e temos até um fechamento. Neste filme Ilya Naishuller conseguiu juntar o melhor da forma da ação gráfica com ideias da ficção-científica. Diria que temos aqui o exemplo perfeito da mistura entre as linguagens cinematográfica e dos videojogos.

Insane Office Escape 2 (2013) de Ilya Naishuller 

Pelo que percebi ambas as curtas funcionam como videoclips de músicas da banda russa Biting Elbows. E realmente revendo o primeiro filme, parece mais videoclip que curta, já o segundo filme é bastante mais autónomo, principalmente porque o filme não prescinde de toda a sonorização de efeitos sonoros.

março 18, 2013

"Out of Nowhere", da escola Bezalel

Out of Nowhere (2012) é o filme de graduação de Maayan Tzuriel e Isca Mayo e é mais uma animação excepcional a surgir da escola Bezalel, Israel. Fiquei impressionado com a iluminação, mas mais ainda com o controlo narrativo e a criação de atmosfera emocional.




No campo visual a animação é soberba, e totalmente dentro da linha daquilo que a Bezalel nos tem habituado, que passa por importar para o visual 3d os tons pastel, pouco regulares neste tipo de tecnologia. A lógica pastel não é muito vista essencialmente porque está no oposto do 3d em termos de brilho difuso, se existe coisa em que o 3d se singulariza é na sua capacidade de atribuir brilho plastificado. Ora seguir uma corrente estética que está no oposto dessa capacidade torna-se de algum modo anti-natura. Mas é exactamente esse o caminho que a Bezalel tem seguido nos vários projectos que vêm sendo apresentados, servindo isso para singularizar as suas criações de todas as outras.

Mas este filme não se fica pelo trabalho estético, temos aqui ao contrário de outros trabalhos que eram mais abstractos no campo narrativo, um caminho muito bem definido, uma personagem com um sentir, e uma progressão e crescimento desse mesmo personagem. Mais ainda é que toda a atmosfera é construída em função deste personagem, o seu sentir espalha-se pela imagem e som. Toda a forma nomeadamente a planificação, evolui para dar sentimento à progressão do sentir do nosso personagem, De certo modo Tzuriel e Mayo conseguiram, neste pequeno filme, projectar completamente as emoções do seu personagem sobre toda a palete formal do filme.

Finalmente no campo da história é brilhante e extremamente atual. Mas sobre isso deixo apenas a ideia subjacente ao filme que os autores escreveram,
How do we face an existence in which one is no longer relevant? How can we continue to live in an illusion?
Two seemingly opposite characters meet in a peculiar situation. When their similarities are revealed, the protagonist is forced to reexamine his life and choose between living a life of sterile existence or stepping outside of his world to discover new horizons.

Out of Nowhere (2012) de Maayan Tzuriel e Isca Mayo

março 15, 2013

"Proteus", viagens irrepetíveis

Proteus (2013) é uma experiência interactiva de grande qualidade estética. Criado por duas pessoas, Ed Key na programação e arte e David Kanaga na música. Apesar de desenhado a 8bits apenas, rapidamente esquecemos a baixa resolução e nos deixamos escapar e imergir totalmente pelo mundo de Proteus. O mais interessante acaba por surgir a partir do seu lado procedimental, ou seja do facto de não se tratar de um mundo pré-desenhado, mas antes de um algoritmo. O mundo e a paisagem sonora em que entramos são geradas a cada re-início de jogo, e nesse sentido, cada jogo é sempre uma experiência única e irrepetível.


Podemos avançar a ideia de que Proteus nao é um jogo por falta de objectivos claros, mas isso é aquilo que se percebe apenas à superfície, porque na verdade Proteus apresenta um início e um fim, assim como uma progressão perfeitamente delineada. A chegada ao final, é no fundo o objectivo último, e depende da nossa acção sobre o mundo para acontecer. Cada experiência completa leva-nos a atravessar as quatro estações, fazendo-nos sentir o frio e o calor de cada uma. A experiência é visualmente muito conseguida principalmente na selecção de cores, é aquilo que nos faz esquecer os 8 bits, de tão harmoniosas e em sintonia com o espírito de cada estação. No entanto acredito que a componente musical acaba por ser aquilo que contribui com maior singularidade para o jogo. Os nossos movimentos, aproximações e distanciamentos de determinados elementos e locais cria faixas musicais próprias, que podemos fazer variar com a nossa acção no espaço. Por vezes damos por nós a parar, ou a voltar atrás, apenas para poder apreciar o som que se produziu à nossa volta.






Em termos das quatro estacões, posso dizer que não me entusiasmou particularmente, aqui mais por defeito profissional. Passei vários anos a estudar o desenvolvimento emocional em ambientes virtuais, e o que posso dizer, é que isto apesar de ser limitado em termos de palete emocional, o problema não é propriamente dos designers, mas antes da opção tomada para o desenho de Proteus. Como tenho discutido ao longo do meu trabalho e venho avançando nessas conclusões com doutorandos, a estimulação de emoções a partir de ambientes é bastante limitada. Temos aqui as quatro estações, sentimos que percorremos uma palete diversa de emoções, mas se pararmos para pensar sobre o que se passou, não conseguimos ir além da contemplação, bem-estar, tranquilidade, surpresa e curiosidade. Tudo o resto, tudo aquilo que verdadeiramente nos marca, as emoções combinadas, estruturadas e complexas não estão ao alcance de um mero ambiente. Para chegarmos a este tipo de emoções precisamos de personagens, precisamos de empatia. Sem estes não temos como nos ligar ao artefacto, e senti-lo, porque este é no fundo um artefacto desprovido de vida.

Sei bem que o jogo tem o poder de nos encantar, e de nos fazer escapar do nosso mundo durante os 45 minutos que por lá passamos, mas terminados, ficamos sem saber porquê, nem o que fica. Comparando com Dear Esther que também era mais ambiente do que personagens, tínhamos uma narrativa que nos conduzia, e tínhamos personagens, tínhamos inclusive um narrador que nos guiava, a quem nos "colávamos". Aliás o mesmo se passava em Myst, outro jogo que nos fazia deambular por um mundo deserto, apesar dos puzzles, a força estava nos dois irmãos e o seu pai, na narrativa que se desvelava a cada nova etapa. Em Proteus, cada etapa corresponde a um novo universo visual e sonoro, e ficamos verdadeiramente desejosos de continuar a experienciá-lo, mas no final, é só isso mesmo, nada mais nos resta.

Diria que Proteus funcionaria muito bem como instalação, uma peça de arte digital num museu, com a qual pudéssemos interagir e escapar do espaço circundante, saborear novas planícies, novos horizontes sonoros. É uma obra experimental que se apodera de uma das melhores características dos ambientes tridimensionais, a interacção através da navegação em conjunto com a música adaptativa.



Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

março 14, 2013

Hobbit, tão pequeno e tão longo

The Hobbit: An Unexpected Journey (2012) é longo, muito longo. Como se não chegasse, não consegui extrair absolutamente nada de novo face à trilogia The Lord of the Rings (2001, 2002, 2003) que vimos antes. Mas o que me impressionou verdadeiramente foi o final do filme, quando descobri que estas três horas eram apenas as primeiras de três partes!!! Peço desculpa aos fãs de Tolkien, mas está aqui a acontecer algo inacreditável. Como é que três volumes de 500 páginas cada um, dão 3 filmes de 3 horas, e depois um pequeno livro de 300 páginas dá sozinho, mais 3 filmes de 3 horas?!



Primeiro, é um desrespeito pela obra do autor. Não se espera que eles vão além do que Tolkien deixou escrito, o objectivo de uma adaptação deste género, seguindo o que foi feito antes, não é pôr-se a especular. Mas o desrespeito maior surge porque como dizia alguém na IMDB, isto é uma atitude puramente mercenária. Pegar neste livro e esticá-lo para três filmes, tem apenas e só um objectivo, criar máquinas de fazer dinheiro.

 




Apesar de tudo, o que mais importa para mim em The Hobbit é a arte visual. Sinto uma sensação estranha ao ver este filme, no qual se mistura claramente a arte da pintura e ilustração com o cinema. Ver Hobbit é como ver uma tela em movimento. Não é animação, nem é filme de imagem real clássica, é um novo meio de expressão. Os mundos e personagens criados em CGI juntos com os atores reais e as paisagens da Nova Zelândia, criam uma espécie de novo universo mágico, mas plausível e crível. Como se tívessemos um meio de expressão intermédio, entre o formato do Livro e do Filme. Um formato que permite representar toda a abstração contida num texto quando esta é impossível de representar em imagens da realidade visível. Não é que tenhamos aqui nada de muito novo, já vimos isto antes, não só na trilogia, como em Avatar entre outros, contudo aqui reforcei esta noção do novo meio de expressão de forma ainda mais clara. Acredito que em breve teremos de criar novos prémios para reconhecer este trabalho, nomeadamente na criação de universos e interpretação de personagens virtuais.