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junho 22, 2019

Filmando o sentir humano

Vi há duas semanas “Everybody Knows” (2018) e vi hoje “The Wild Pear Tree” (2018), de ambas as experiências guardo sentires em forma de hipérbole. Asghar Farhadi  e Nuri Bilge Ceylan são os meus realizadores preferidos desta última década. Não são apenas realizadores, são também quem escreve os filmes, e isso faz toda a diferença. Ambas as obras usam o meio, do cinema, para expressar o sentir mais humano possível. Não falo de drama, nem tragédia, não existe aqui puxar à lágrima, à tristeza ou sofrimento para gerar empatia, mas do sentir que todos sentimos em todos os momentos, emergente dos questionamentos a que não podemos escapar enquanto seres conscientes. Nem Ceylan nem Farhadi têm qualquer pretensão de dar respostas, mas apenas e só plasmar esse mesmo sentimento para que possamos ver-nos ao espelho e compreender que não estamos sozinhos.



Imagens de “The Wild Pear Tree” (2018)

“Everybody Knows” centra-se nas relações familiares, imagem de marca do autor, pode-se mesmo dizer que é a sua obsessão, explorar as pequenas quezílias que testam a força das relações, a força do que une pelo sangue, filhos e pais, assim como pela experiência, maridos e esposas. Farhadi desenha os seus filmes como se fossem acessos temporários a vidas e conflitos reais que decorrem num qualquer lugar, colocando-nos no lugar privilegiado da primeira fila para a tudo podermos assistir em  primeira-mão. E apesar de não serem nossa família dificilmente não compreendemos, não sentimos o que sentem. Farhadi não se socorre da estratégia clássica do arco narrativo, com princípio, meio e fim, mete-nos antes dentro do conflito em ebulição e faz-nos viver com eles, no final retira-se e retira-nos, sem respostas nem fechamentos. Cabe ao espectador compreender tudo aquilo por onde acabou de passar e sentir.



Imagens de “Everybody Knows” (2018)

Ceylan não é muito diferente, ainda que tenda a seguir uma estrutura mais progressiva, sem no entanto se coibir de lançar rasgos de fluxo de consciência por entre sonhos que por vezes nos deixam perdidos, ou rasgos de dissertação filosófica pura. Ou seja, tecnicamente é bastante diferente de Farhadi, mas não deixa de procurar tocar os mesmos modos do humano que este. Ceylan foca-se mais no indivíduo, no modo como o mundo o pressiona e com ele se relaciona, como ele se desenvolve, evolui e progride. Deste modo acaba servindo-nos experiências mais melancólicas, introspectivas. Neste “The Wild Pear Tree” atravessamos três gerações pelos olhos de um jovem a entrar na fase adulta, acabado de sair da universidade, sem saber o que se segue na sua vida, com o sonho de publicar um livro, num confronto entre o citadino e o rural, entre a educação e a religião.

julho 05, 2014

Asghar Farhadi e os dilemas

Asghar Farhadi iniciou-se nas longa-metragens em 2003 e desde então realizou seis filmes. Hoje acabei de ver a sua filmografia, e se a procurei ver foi porque considero Asghar Farhadi o mais relevante realizador da atualidade. Farhadi não é apenas realizador das suas obras, é também o escritor destas, ainda que por vezes em parceria. Tal como com outros grandes realizadores, o facto de se escrever o texto de suporte à obra audiovisual faz diferença, no momento em que se procura dizer algo, em que se procura dar forma audiovisual a um sentir, a expressividade ganha com a fusão entre a mensagem e a forma. Farhadi fez a sua licenciatura e mestrado em cinema na Escola de Artes Dramáticas da Universidade de Teerão, Irão.

Asghar Farhadi (1972)

Em 2003 realizou a sua primeira longa-metragem, “Raghs dar ghobar” (Dancing in the Dust), que tive o prazer de visionar na semana passada. É um primeiro filme, nota-se que existe ali algo pronto a emergir, mas isso nunca chega verdadeiramente a acontecer na tela. É uma obra inicial em que Farhadi está claramente mais preocupado em ser capaz de dar conta da história em termos audiovisuais, do que propriamente em inovar ou aprofundar o meio. Apesar de tudo, o filme indicia desde logo os temas de fundo que movem a escrita de Farhadi, o amor e as divisões sociais, os sacrifícios que este impõe e o modo como a cultura islâmica o aprisiona.

Raghs dar ghobar” (Dancing in the Dust) (2003)

O cerne do trabalho de Farhadi está centrado sobre a moral, essencialmente sobre os seus dilemas, capazes de levar os seus personagens ao extremo de si próprios, colocando-os à prova e obrigando-os a reagir. Neste sentido Asghar Farhadi aproxima-se bastante de Krzysztof Kieslowski, sendo que aquilo que os diferencia é apenas a camisa moral que vestem, uma de fundo cristã, a outra de fundo islâmica.

"Shah-re Ziba" (Beautiful City) (2004)

Se em 2003 Farhadi procurava apenas pôr-se à prova enquanto realizador, em 2004 a sua segunda longa-metragem, “Shah-re Ziba” (Beautiful City), surge já com toda a força da sua veia narrativa e exposição audiovisual. “Shah-re Ziba” põe em cena personagens que começam por parecer tão simples, discretos e fáceis de compreender, mas à medida que progridem com a narrativa vão-se densificando, enfrentando questões que parecem abrir-se para outras ainda mais complexas. Os personagens vão-se abrindo, como camadas de uma cebola em direcção centro, sentimos com o evoluir da história que estamos cada vez mais próximos dos seus âmagos, até que deixam de ser meros personagens e passam a ser pessoas de carne e osso na nossa frente, com as quais não conseguimos deixar de empatizar.

Isto acaba resumindo o modo de trabalho de Farhadi que se propaga através de todas as suas obras seguintes, "Fireworks Wednesday" (2006), "About Elly" (2009), "A Separation" (2011) e "Le Passé" (2013). Sobre este último e como já tinha dito antes, acredito que o facto de ter sido a primeira experiência de Farhadi fora do Irão, não tenha resultado tão instigante. Aliás basta ler as suas entrevistas para compreender o quanto do que está nos seus filmes está ligado à cultura do local que habita. Em certa medida, nota-se, tal como se notou na sua primeira longa “Raghs dar ghobar”, alguma preocupação maior em fazer bem e perfeito, e com isso acaba-se perdendo alguma arte e mestria. Mas estas duas obras denotam ainda mais toda a sua qualidade enquanto artista, como alguém que precisa primeiro de respirar o mundo que quer verbalizar, de o sentir na sua essência para então dar conta dele em imagens, sons e textos. Farhadi está assim bem distante do mero realizador de serviço, do técnico que marcha em função do predeterminado.

Julgo que aquilo que esta sua forma de trabalhar - viver, escrever e realizar - permite-lhe chegar a níveis que dificilmente se poderiam atingir de outra forma. O que podemos sentir nas suas obras é algo extremamente impregnado no todo, numa narrativa sempre densa com personagens sempre bastante complexos, tudo envolvido por uma realização muito próxima das questões, preocupada em transmitir os dilemas, secundarizando totalmente o acessório, encaminhando o espectador para o interior das suas personagens. Farhadi cria em cada uma das suas obras, momentos de profunda análise do que é ser-se humano, do que é viver-se com o outro, depender-se do outro, formar um todo com o outro.

Cada um dos seus filmes tem sido bastante fértil em prémios nos vários festivais internacionais de topo - Cannes, Veneza, Berlin - incluindo o primeiro oscar para o Irão em 2011. Fico agora ansiosamente a aguardar pelo seu próximo trabalho.

maio 21, 2014

O social e as barreiras culturais

Em conversa com um colega nomeei Asghar Farhadi como o melhor realizador da atualidade, depois percebi que só tinha visto os seus filmes mais recentes About Elly (2009), A Separation (2011) e Le Passé (2013), por isso fui pesquisar as suas obras anteriores e encontrei "Fireworks Wednesday" (2006). Não me desiludiu, mostra apenas o início de uma carreira que promete ser brilhante.




Falei aqui com muita emoção de About Elly (2009) e A Separation (2011), mas não falei do último filme Le Passé (2013). Julgo que dos três últimos, continuando a ser muito bom, não mexeu tanto comigo, e por isso não me levou a ter vontade de escrever. Agora que vi "Fireworks Wednesday" julgo que percebi em parte o que se terá passado, Le Passé é passado em França com algumas ligações ao Irão, mas aquela aura cultural muito particular do Irão perde-se. Ou por outro lado tendo sido a primeira experiência de Farhadi fora da sua cultura nativa, não terá sido tão liberto como nos filmes realizados em casa.

Percebi isto com "Fireworks Wednesday" porque sendo um filme anterior, em que Farhadi denota uma menor mestria técnica da arte cinematográfica, no campo narrativo e performativo o filme regista uma qualidade elevadíssima. Algo que também só é possível porque os filmes são escritos e baseados em histórias suas, mas que no caso de Le Passé acaba por denotar alguma distância, perfeitamente natural, que o realizador tem face à sociedade francesa.

Concentrando-me em "Fireworks Wednesday" é uma obra que apresenta aquilo que tinha dito a propósito de "A Separation", a "marca de autenticidade do seu trabalho" sendo difícil para quem conhece qualquer filme seu, "voltar a ver um seu filme sem imediatamente o identificar". Farhadi é um analista do ser humano, um cientista social, capaz de perscrutar os mais íntimo do íntimo das relações interpessoais e sociais, sendo a partir daí que depois conta as suas histórias. Na senda dessa autenticidade, em "Fireworks Wednesday" somos atirados para o lugar de uma jovem prestes a casar-se, que ao longo de um dia apenas, choca de frente com a dura realidade da relação do casamento, da complexidade humana, e das infinitas variáveis que compõem a teia social que une os seres uns aos outros.

"Fireworks Wednesday" é um trabalho brilhante de storytelling e acting, capaz de nos conduzir através de uma cultura estranha para nós, tornando-a fácil e acessível, fazendo parecer que todas aquelas pessoas poderiam morar no apartamento ao lado do nosso, fosse na Europa, EUA ou Brasil.

dezembro 16, 2012

narrativas do indeterminismo

A Separation (2011) ganhou o Oscar para melhor filme estrangeiro deste ano, e o Urso de Ouro em Berlim. Realizado por Asghar Farhadi o realizador iraniano de About Elly de que aqui falei no mês passado. Depois de About Elly era difícil surpreender, ambos os filmes trabalham a dramaturgia das relações humanas a um nível raramente visto no cinema, apesar de neste blog ter falado recentemente de outros dois filmes neste mesmo nível de registo, Amour (2012) de Michael Haneke e Sangue do meu Sangue (2011) de João Canijo.


A Separation obriga-me a questionar a ideia de Amour ser um filme genuinamente Europeu. É verdade que sentimos aqui a religiosidade de uma forma impossível na Europa de Haneke, mas os problemas micro-analisados por Farhadi são tão próximos da realidade Europeia. O divórcio, os filhos, a velhice mostrados a partir de uma geração com níveis altos de educação à prova de qualquer religião e que os aproxima tanto daquilo que pudemos ver em Amour. A vida acelerada, os telefones, os carros, o Alzheimer, o "stalking", é tudo tão ocidental que dá vontade de questionar os media ocidentais sobre a realidade que todos os dias nos mostram do chamado Médio Oriente. Existem alguns dados que seria ainda preciso aferir porque este discurso é cerceado de limitações no campo da crítica social, já que o realizador chegou a ser banido recentemente no Irão por ter defendido alguns dos seus colegas mais radicais, tendo sido obrigado a retirar as declarações para poder filmar A Separation  Deste modo, esta abordagem cultural do Irão é talvez a abordagem possível, é o meio através do qual Farhadi consegue ainda assim fazer passar o seu mundo.


A construção narrativa em A Separation está ao nível de About Elly  do mais perfeito que podemos encontrar, trabalhando elementos em profundidade, extensão e encenado a uma velocidade incrível. Sempre defendemos o Cinema como uma arte singular, distante do Teatro, que o é, mas aquilo que podemos ver no cinema de Farhadi é a magia do Drama como só o teatro tem sabido criar. Farhadi usa toda a técnica cinematográfica, toda a técnica dramática, e cria uma nova forma de expressar e verbalizar as suas ideias. Podemos dizer que temos aqui uma marca de autenticidade do seu trabalho, será difícil voltar a ver um filme seu sem imediatamente o identificar.


Na história impressiona-nos todos aqueles personagens que como nós procuram apenas viver as suas vidas, trabalhar de forma séria para conseguir o melhor para os seus, mas o acaso, o orgânico das relações sociais, a vida em si, vai-se encarregando de os provocar. Como em About Elly, Farhadi trabalha sobre o fio do mais puro indeterminismo, ninguém quer o mal de ninguém, mas o mais puro acaso, a coincidência de factores sem causa aparente, desenvolve-se e é aqui que Farhadi brilha em todo o seu esplendor narrativo. A matriz narrativa clássica não existe sem causalidade, e Farhadi consegue desenvolver por debaixo dessa causalidade, toda uma rede de não-causalidade, é simplesmente brilhante.

novembro 16, 2012

um esboço da interacção humana

About Elly (2009) deveria ser um filme obrigatório em qualquer disciplina de narrativa cinematográfica, mas não só, também nas cadeiras de teoria de design de videojogos, no ponto sobre a narrativa. O filme foi realizado por Asghar Farhadi o realizador iraniano de A Separation (2011) ganhador do Oscar para melhor filme estrangeiro deste ano, e do Urso de Ouro em Berlim. Ainda não vi A Separation, mas a julgar por About Elly, promete. [Atualização: análise de A Separation entretanto visto]


About Elly é todo ele emoção, mas emoção criada pela matriz narrativa, não pela história, pelo que diz. Não depende dos núcleos nem catalisadores para forçar o sentimento no espectador, o espectador é antes enredado num conjunto de laços e redes sociais, que geram um puzzle humano poderoso capaz de nos deixar à deriva em busca de razões explicativas sobre aquilo que somos enquanto pessoas, enquanto parte de uma família, de um grupo, de uma comunidade.



Tenho visto algumas comparações com algum cinema Europeu, mas em termos comparativos, poderia dizer que About Elly, seria como pedir a Michael Haneke para fazer a sua versão de L’Avventura (1960) de Antonioni. O nó principal assemelha-se a L’Avventura e o modo como é contextualizado em parte também (o lugar isolado), mas a força dos dilemas humanos apresentados é trabalhado num sentido muito mais profundo em termos plásticos. Antonioni é minimal, gosta de sugerir, mas Farhadi é muito mais directo forçando o questionamento, mas não só sobre as relações humanas, é como se ele entrasse adentro delas, e as mostrasse de dentro para fora, algo que Haneke tão bem sabe fazer.


About Elly é um poderoso drama psicológico, um verdadeiro esboço das relações humanas. Mesmo que os costumes do Irão, nomeadamente no campo da relação homem-mulher, nos possam parecer algo distantes, tudo o resto é-nos tão familiar, tão próximo, tão sensível que nos impede de sentir indiferença. O intrincado jogo de interações humanas, parece quase um laboratório de análise social, à espera de ser desmontado e sentido pelo espectador.