março 14, 2021

O Infinito aberto pela Escrita e o Livro

O Infinito num Junco” é um livro sobre os Clássicos — cultura da Grécia e Roma antigas — focado na invenção da Escrita e do Livro, escrito num tom bastante leve, arredado do formalismo da Academia na qual a autora Irene Vallejo (1979) se doutorou, e que ninguém esperava ver tornar-se num sucesso de vendas em 2020. Em Espanha, além dos múltiplos prémios, saíram mais de 25 edições, e em menos de um ano já vai com mais 30 de traduções — português, francês, holandês, etc. O que tem esta obra para gerar tanto interesse?


Julgo que o primeiro ponto a favor se deve à intenção da autora: “Em toda a minha carreira, foi o projeto que fiz mais por necessidades íntimas e paixões do que por razões pragmáticas ou por cálculos”. O livro transborda de paixão pelos clássicos, e mais ainda pelo artefacto do Livro e tudo o que a ele se liga, desde o alfabeto ao contar de histórias. Vallejo viaja até ao berço da civilização europeia, na Mesopotâmia, para dar conta do surgimento da Escrita e da sua importância para a civilização que existe hoje no século XXI. Inicia aí um périplo de 3000 anos de história até ao declínio de Roma, dando-nos a mão para explicar como aquilo que somos hoje se deve às letras que aprendemos a inscrever em bocados de argila, papiro, pergaminho e mais tarde papel.
“o ofício de pensar o mundo existe graças aos livros e à leitura, ou seja, quando podemos ver as palavras, e refletir devagar sobre elas, em vez de nos limitarmos a ouvi-las pronunciar no veloz rio do discurso.”
De certa forma, o maior encanto do discurso de Vallejo reside nesse “dar a mão” que se traduz por continuamente ligar os clássicos à contemporaneidade. Ora está a falar de Aristóteles, enquanto professor de Alexandre, ora está a falar de concertos míticos dos Iron Maiden no século XX dedicados a Alexandre. Ora está a falar de Aristófanes, ora recorda Chaplin. Ora fala dos rolos de papiro e pergaminho, para logo explicar como usamos a palavra “scroll” (rolo de papiro/pergaminho) para passar as fotografias nos ecrãs dos nossos telemóveis. Ora está a falar da “Ilíada” de Homero, ora está a contar-nos sobre uma cena de “O Homem que Matou Liberty Valance” de John Ford. Ora está a falar dos interesses culturais e artísticos da mudança do centro de Atenas para Roma, ora nos explica como Peggy Guggenheim mudou o centro da arte, no século XX, de Paris para NY. E por aí fora, desde “O Laço Branco” de Haneke, a “Fogo Pálido” de Nabokov, passando por inúmeras citações a “O Nome da Rosa” de Eco, “A História da Sexualidade” de Foucault, falando de “Gangs of New York” de Scorsese, ou de “A Vida de Brian” dos Monty Python, passando por “1984” de Orwell, “Bowling for Columbine” de Moore, ou também “2001: Odisseia no Espaço” de Kubrick. Que usa para falar da Biblioteca de Alexandria, de Ptolomeu, Pompeia, Platão, César, Aristóteles, Heráclito, Homero, Tucídides, Sócrates, explicando por exemplo, entre tantas outras coisas, o que é o Helenismo e como os Romanos foram o primeiro povo a invadir e a explorar os outros a acabar colonizados pela cultura desses outros.
“os britânicos Iron Maiden chamaram «Alexander the Great» a um dos seus temas mais lendários. O fervor por esta peça de heavy metal é quase sagrado: a banda de Leyton nunca a interpreta ao vivo, e circula entre os fãs o rumor de que só soará no seu último concerto.”
A bagagem cultural de Vallejo parece inesgotável. De cada vez que voltava à leitura, eram apresentados mais e mais casos, e sentia como um inebriamento pela informação que me ia sendo oferecida, de forma tão acessível, quase como se estivesse apenas a fazer scroll das páginas, consumindo, desejando apenas continuar a absorver tudo o que ela tinha para contar.

Isto que Vallejo faz, é no fundo, aquilo que faz um bom professor quando dá uma aula. Quando, liga o conhecimento na especificidade a exemplos e metáforas próximas do conhecimento dos alunos. É por isso que o ensino em sala de aula é tão importante, porque ensinar é exatamente transformar o conhecimento distante, em algo compreensível para as pessoas que nos estão a ouvir. Não é possível ensinar bem, sem conhecer os nossos interlocutores, a sua cultura, os filmes, livros, séries que veem, leem e gostam ou detestam, porque sem esse manancial de conceitos do real, não temos como traduzir na linguagem deles o ainda desconhecido.
“Nunca esquecerei aqueles minutos de intimidade — quase erótica — com um Petrarca do século XIV. Enquanto cumpria o ritual de acesso aos manuscritos de valor incalculável — entregar a minha mochila aos bibliotecários, conservar apenas uma folha de papel e um lápis, calçar as luvas de algodão, submeter-me à vigilância dos guardiães do tesouro —, confesso que senti umas agradáveis pontadas de peso na consciência pelos encórdios que o meu excêntrico fetichismo pelos livros estava a provocar. Às vezes imaginava que, como castigo, ia cair sobre mim alguma das alegorias que flutuavam nas pinturas do teto entre nuvens e escudos heráldicos. (...) Ao acariciar o códice, lembrei-me de que aquele maravilhoso pergaminho tinha sido um dia o lombo de um animal que depois seria degolado. Em apenas umas semanas, o gado podia passar da vida no prado, no estábulo ou na pocilga para se converter numa Bíblia.”
Todo o discurso montado por Vallejo funciona muito bem porque esta soube criar um trabalho de não-ficção novelizado, algo que a academia não costuma ver com bons olhos, porque naturalmente se tende a algum exagero, excesso de emocionalidade, que para alguns é perda de tempo com floreados sem importância. Contudo, é isso que faz aqui toda a diferença. Porque Vallejo se viu na obrigação de especular sobre as vidas dos personagens do seu texto e com isso foi capaz de nos dar a ver muito do que era viver naquele tempo, algo a que raramente acedemos na leitura de obras mais históricas ou filosóficas. Vallejo tece e urde, citando Sophia de Mello Breyner Andresen: “Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto, sem jamais perderem o fio de linho da palavra.” É isto que Vallejo nos dá, uma tessitura pungente de história e palavras, uma tapeçaria histórica, fruto da colagem de histórias da nossa civilização que começou nos gregos.
“A Biblioteca tornou realidade a melhor parte do sonho de Alexandre: a sua universalidade, o seu afã de conhecimento, o seu incomum desejo de fusão. Nas prateleiras de Alexandria foram abolidas as fronteiras, e ali conviveram, por fim calmamente, as palavras dos gregos, dos judeus, dos egípcios, dos iranianos e dos indianos. Talvez esse território mental tenha sido o único espaço acolhedor para todos eles.”
Deste seu trabalho elevam-se elementos pouco conhecidos, mas por muitos de nós sempre questionados, tal como perceber a fragilidade dos livros e o modo como eles, alguns, poucos, sobreviveram milhares de anos. Perceber como as populações, e a elite, olhavam para eles. Perceber como funcionavam as escolas, os professores, a aprendizagem, as bibliotecas públicas e privadas, o acesso à cultura e ao conhecimento. Compreender como se escrevia, que alfabeto se usava, onde e quando, como se criou a pontuação, como se preservavam os rolos e os livros. Perceber como viviam e os valores que defendiam os helénicos, e os seus sucessores, os romanos.
“Talvez pela primeira vez, os gregos perceberam que as frágeis palavras dos livros eram uma herança de que os seus filhos e os filhos dos seus filhos precisariam para explicar a vida: que algo tão efémero — o desenho de um sopro de ar, a vibração musical dos nossos pensamentos — tinha de ser preservado a pensar nas gerações futuras; que as antigas histórias, lendas, contos e poemas são testemunhos de umas aspirações e de uma forma de entender o mundo que se negam a morrer.”
“Já no século IV a. C., os grandes nomes da tragédia eram um repertório fechado: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Meio século depois da morte do último deles, a reposição das suas célebres peças de teatro converteram-se no ingrediente principal dos programas cénicos. Atraíam mais público do que os seus sucessores vivos. O governo ateniense decidiu criar um arquivo estatal para proteger — como bem público — as versões genuínas das tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, e só dos três.”
Do mesmo modo, e sendo Vallejo mulher, nunca se coíbe de por o dedo na ferida de todos aqueles séculos em que à mulher se vedou acesso à criação e ao poder, falando de Hipátia, Aspásia, Cleópatra, mas também do ridículo do teatro grego que levava a cena a Medeia ou Antígona apenas com atores masculinos. Mas Vallejo nunca usa da sua condição, nem sequer da realidade histórica, para produzir a menor misantropia. Aliás, esta talvez a condição mais interessante do seu discurso, o modo humilde e ao mesmo tempo profundamente conhecedor, com que fala da realidade, sem deixar de apontar os problemas e os defeitos, mas sem ousar impor as suas correções. Optando por um discurso continuado de conciliação entre o passado e o presente, entre um mundo menos favorável e o mundo atual.

Fotografia do jornal espanhol ABC

Este seu discurso foi de certo modo um bálsamo, não só porque tenho vindo a interessar-me cada vez mais pelos clássicos, particularmente pelo Helenismo, mas porque se assiste dentro da Academia a movimentos que nos querem fazer questionar o valor desta herança. Ainda recentemente Padilla Peralta, professor associado de Princeton defendia numa conferência que se devia terminar com os Estudos Clássico por toda a carga racista que impunham, na senda de uma outra polémica, em que alunos da Universidade de Londres exigiam a retirada dos “filósofos homens e brancos” do currículo, rotulando-os a todos de racistas. Aliás, uma polémica que chegou também a Portugal com a vontade de implodir o Padrão dos Descobrimentos, alegando racismo dos feitos dos navegadores portugueses.
"A humanidade desafiou a soberania absoluta da destruição ao inventar a escrita e os livros." 
Em síntese, “O Infinito no Junco. A invenção do livro na Antiguidade e o nascer da sede de leitura” (2019) é uma história de paixão pela construção do conhecimento humano e fetichismo pelo registo desse conhecimento. Um relato carregado de considerações e observações acutilantes, onde as metáforas ganham continuamente a capacidade de surpreender o leitor, mesmo que por vezes estejam ali quase por debaixo da nossa língua. Tudo graças uma capacidade impressionante de unir o saber mais erudito, puro classicismo ao saber mais contemporâneo, pura cultura popular. Nas suas mãos, tudo é conhecimento, tudo é fruto do labor humano. Não importa a época, nem quem o produziu. Fazemos todos parte da mesma espécie, e por isso mesmo coloco Vallejo ao lado de Harari.


Partilhei algumas citações do livro no Facebook, deixo junto com mais algumas ligações:

Roma e a Escravatura, 5 março 2021
O Bullying na Escola, 4 março 2021
A censura de Twain, 1 março 2021




Nota: tendo em conta que não se trata de um ensaio, mas um ensaio novelizado, deve ter-se em atenção as citações usadas pela autora, já que não raras vezes se encontram truncadas sem aviso. Deparei-me com este problema na análise de uma citação do Nome da Rosa, em que Vallejo condensa textos de vários páginas num único parágrafo.

2 comentários:

  1. Olá Nelson. Eu tenho sempre um assumido «preconceito» contra este género de obras e, se calhar, só tenho a perder. Mesmo Harari, tenho algumas reservas. Tenho um bocado de horror aquelas obras (e sei que não é o objectivo destes autores mais robustos) que resumem o Homem e a sua presença na Terra desde o primeiro antepassado ao século XXI. Da roda aos carros Tesla. Não sei. Gosto de uma análise mais ao género de Gadamer. Acho que não consigo explicar. Parece que são aqueles livros para quem não tem tempo de ler autor a autor, o que é bom porque mais vale saber pouco que nada, mas que retira algum encanto da...profundidade das coisas? ahah acho que fui confusa, mas pronto. Vou ver se lhe dou uma chance porque adorei (como sempre) a tua análise. Vais ser responsável pela minha insolvência devido à compra massiva de livros! ahah

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    1. Obrigado pelo comentário Raquel.

      Percebo o que dizes, mas se assim fosse não poderíamos gostar de Sagan :)

      A ideia é usar estas obras como portas de entrada. Se tiveres interesse, vais mais fundo. Ela abre imensas janelas para continuares a aprofundar.

      O Harari é um bocadinho diferente porque constrói teorias sobre o mundo analisado, aproxima-se mais de Sagan, embora mais ainda, porque propõe mesmo modelos teóricos interpretativos completamente novos em obras de mera divulgação.
      A Irene limita-se mais a encher de vida o mundo do passado, mas fá-lo tão bem que nos abre o apetite por querer ler mais e mais sobre aquele mundo, e não o contrário. Por outro lado, para aceder a um passado com 3 ou 4 mil anos, pelas obras originais, precisarias de algumas décadas de treino!

      Vai comprando aos poucos :)

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