dezembro 07, 2016

“Inside”, uma obra incontornável

"Inside" é uma obra dotada de imensa maturidade que assenta numa enorme consciência do que é um videojogo, ao que se junta uma vasta cultura artística áudio/visual/ficcional, e por fim grande competência criativa no modo como constrói a integração do todo. Dito isto, existe imenso para analisar num jogo com este alcance, do que tentarei dar aqui conta, apenas à superfície, de alguns dos elementos que considero mais relevantes, mas acreditando e esperando ver algumas teses de mestrado futuras sobre o mesmo. Assim, e independentemente da dimensão que ocupa num disco duro, ou do tempo que se leva a terminar, se não for Game of the Year ombreará de muito perto.






:: Design de jogo
“Inside”, tal como “Limbo”, funcionam mais como walking simulators, com a particularidade de se apresentarem através de um ponto de vista único, na forma de sidescroller, ao que se adiciona um conjunto de obstáculos, na forma de puzzle, sendo que a sua essência reside no ambiente, e na história contada por este. Ou seja, falamos aqui fundamentalmente de environment storytelling. Neste campo, ambas as obras são virtuosas, assentes num minimalismo soberbo, capaz de conferir todo uma imensidão de significados, algo ainda pouco trabalhado na arte dos videojogos. Arnt Jensen, o diretor de ambas as obras, vem de um país com forte tradição no campo, apesar de no cinema, podendo inspirar-se em autores como Carl T. Dreyer, Lars Von Trier ou Joachim Trier.

O design pode ser analisado a partir de um particionamento do jogo em quatro categorias — Ambiente, Personagens, Eventos, Obstáculos — estando o design mais focado nos obstáculos (puzzles), mas não podendo separar-se dos restantes elementos. De modo que apesar de Arnt Jensen dirigir, encenar, tem de o fazer sempre em cocriação com o lead designer, Jeppe Carlsen.

Se adoro tudo o que engloba, dos ambientes aos eventos, no caso dos obstáculos surgem-me algumas resistências. Porque se temos de admitir que os mesmos são desenhados com enorme perspicácia, totalmente embebidos no ambiente, são parte, nunca surgem como extrínsecos, nem sequer extemporâneos, fica-me um certo amargo de falta de conexão com os eventos. Ou seja, os obstáculos são desenhados na sua relação com o ambiente, e nesse campo funcionam muitíssimo bem, acabando por se dar à personagem de forma lógica e coerente, contudo contribuem muito pouco para a definição dos eventos. Reduzem-se a meia-dúzia, os obstáculos que realmente produzem eventos, narram, dão conta daquilo que o ambiente desesperadamente tenta dar conta quase sozinho. As exceções vão para os tipos de morte que sofremos, nomeadamente quando atacados por forças do mundo, ou quando ativamos e controlamos algo supostamente “inteligente” desse mundo, embora neste segundo grupo surjam também imensas estruturas inconsequentes do ponto de vista narrativo.

Isto não minora o design de jogo que a partir do que digo, sobre a relação com o ambiente, é brilhante. Podia realmente conseguir uma maior sintonia narrativa, mas aqui admito que os posicionamentos quanto ao que um jogo, um filme, e uma história interativa devem ser, possam distanciar-se. Ou seja, o design de “Inside” é ele próprio uma mina de perspetivas de análise, podendo variar imenso o que se interpreta em função do ponto de partida, se procuramos mais narrativa ou mais jogo. Apesar de “Inside” pouco espaço dar a um posicionamento exclusivo de jogo, mesmo que o seu criador diga que não está focado na narrativa, o que só por si daria toda uma outra discussão sobre a artes e os processos criativos. E seguindo esta possibilidade, foco no ponto seguinte a arte de “Inside”.

:: Arte Visual
Mais uma vez falando também de “Limbo”, a arte é extraordinária no campo da ilustração, pode-se dizer que em certos quadros falamos mesmo de pintura, em que o propósito de comunicar uma ideia é ultrapassado, deixando espaço aos criadores para se incluírem a si próprios no trabalho final. São os cenários que criam os ambientes que acabam por dar vida ao mundo narrativo. Ambos os jogos trabalham agarrados a uma técnica da pintura, que o cinema em tempos também recuperou, o chiaroscuro, uma técnica cara a Caravaggio, que contribui para a criação de mundos, pintados, que formam uma espécie de duas dimensões que se entrechocam: o da presença de luz, e o da ausência dessa luz.

Mas existe todo um campo da arte de jogo em que “Inside” vai muito além de “Limbo”, é o da animação, nomeadamente da câmara e do personagem principal, a cargo de Andreas N. Grøntved com a contribuição visual de Morten Christian Bramsen. A câmara, apesar de condicionada pela perspetiva 2D, trabalha imenso com a profundidade, muito graças aos cenários tridimensionais. Assim, e por via da animação da câmara, a interação que se desenha sempre num plano bidimensional, ganha um escopo tridimensional. Não raras vezes o plano 2d surge em diagonal e profundidade, e a câmara segue, ao que se junta todo um enorme trabalho de cenarização para criar efeitos de parallax e assim construir uma ideia de mundo completo e vivo. No entanto todo este poderio técnico nunca se torna centro de si próprio, surge sempre ao serviço do que se pretende mostrar ou fazer.

Mas se a câmara surpreende, o personagem principal é o verdadeiro ex-libris da animação. Sendo a sua forma visual tendencialmente abstrata, desde logo pela ausência de cara, é na linguagem corporal, essência animada, que tudo se joga, literalmente. Bastam poucos segundos de contato com o gamepad e o jogo, para percebermos que não se trata de um simples personagem do sidescroller tipo. A forma como salta, agacha, cai e quase cai, espreita, pega em objetos, toca em superfícies, nada, vira frente/trás, ou cai morto, é absolutamente impressionante. Não se trata de mero movimento, nem sequer de criar a impressão de vida, é muito mais do que isso, é pura comunicação, é a expressão de pensamento e sentimento. Sendo a animação grandemente responsável por grande parte do relacionamento que vamos criando com esse personagem. Para quem quiser deter-se mais neste ponto, deixo a ligação para um conjunto de gifs recolhidos pelo Rock Paper Shotgun que servem bem uma análise inicial, não invalidam jogar para experienciar interativamente as animações.

:: Arte Sonora
Este campo costuma dividir-se, de forma bastante acentuada, entre o design de som e a música, contudo no caso específico de “Inside” essa divisão não nos oferece grande proveito, uma vez que a fronteira é ténue, sendo o diretor de ambas a mesma pessoa, Martin Stig Andersen. Diria que a principal razão para tal assenta no minimalismo musical. Assim, não raras vezes damos por nós na dúvida se o som que ouvimos é melodia de fundo, ou faz parte do universo em que estamos incluídos, já que raramente esta se destaca do fundo narrativo. Para isto contribuí imenso o desenho de sonorização dos espaços, que de algum modo se vai misturando de forma muito imbricada com o score. Desde os ruídos emitidos pela maquinaria, aos ruídos emitidos pelo personagem, o áudio parece mais um todo, do que a tradicional pista musical, sobre a qual se trabalham efeitos de som.

Esta fusão não surge sem um propósito, é minimalista, mas não é só isso, o minimalismo áudio procura, dada a sua influência emocional, seguir o minimalismo da escrita, daquilo que a obra tem para dizer. E é disso que falo no próximo ponto. Deixo ainda sugestão para quem quiser mais sobre esta parte de uma entrevista dada ao Kill Screen.

:: Arte Ficcional
Optando Jensen por dizer de forma tão pouco explícita ao que vem, dentro e fora da mesma, já que raramente dá entrevistas, ou quando dá evita explicações, toda a estética se sintoniza com esta abordagem. “Inside” é extremamente contido no que diz, cria quadros de ideias, mas não os liga causalmente de forma evidente, nem se detém nunca para explicar, explanar, ou expor argumentos. Opta por apresentar uma ideia geral, macro, a partir da qual escalpeliza alguns eventos, coloca o jogador no centro dos mesmos, via interatividade e inferência, e depois espera que seja o jogador a preencher os espaços deixados vazios, propositadamente, com as suas experiências do mundo. Ou seja, a história não está fechada: um mundo é apresentado e um personagem introduzido. Na progressão do jogo percebemos como evolui o nosso personagem, que vai ganhando capacidades que o separam do mundo inicial e o aproximam do estranho mundo em que entrámos (“Inside”), mas cabe ao jogador, recetor, definir exatamente que mundo é esse (estamos “Inside” de quê), o que representa, o que quer dizer!

Não existe uma única forma de interpretar o que nos é apresentado, e por isso cada um poderá ver diferentes significados no mundo narrado pelo jogo. Como disse, e dizia Eco no seu “Obra Aberta” (1962), o mundo que lemos e vemos, é o mundo apresentado conjugado com o mundo de que somos feitos. Ou seja, para quem tiver lido, e vivido, obras como “Brave New World” (1932), “Animal Farm” (1945) ou “1984” (1949) representará, ainda que próximo, algo diferente de quem tiver lido obras como “The Simulacra” (1964) ou “Neuromancer” (1984), ou ainda tiver visto filmes como “The Thirteenth Floor” (1999) ou “Matrix” (1999), ou ainda de quem tiver seguido filmes como “Dark City” (1998), “Prometheus” (2012), e claro “Existenz” (1999). Para quem não tiver lido/visto nada de Ficção Científica, representará algo distante de muito disto, dependente do tipo de mundo que contém dentro de si. Apesar de tudo, “Inside” não deixa de se inclinar para a distopia, para uma melancolização em redor do progresso tecnocientífico. E fá-lo de forma erudita, minimal e profundamente coerente.

Ficha técnica

Dito tudo isto, concordo com o Rui Craveirinha quando diz que “Inside acaba a ser um marco para o género da ficção científica videolúdica”, e vou mais longe, é um marco da Ficção Científica, enquanto género ficcional. Um género que começou pela literatura, ganhou toda uma nova dimensão no cinema, mas de há alguns anos para cá, tem encontrado no meio dos videojogos um espaço de cada vez maior relevância (recordemos por exemplo "SOMA" do ano passado).

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