setembro 01, 2016

“Viagens de Gulliver” (1726)

Gulliver pode não ser a maior obra de arte literária, mas é uma das obras literárias de maior impacto narrativo na nossa civilização recente. Não existe meio expressivo — cinema, rádio, banda desenhada, teatro, etc. — que não tenha visto surgir a sua versão de "Viagens de Gulliver", sendo que desde que foi publicado, há quase 300 anos, não deixou de ser reapresentado a cada nova geração. Gulliver é fruto do mais nobre que a imaginação humana nos pode dar, o puro ato de fantasia, em todo o seu esplendor criativo.


Se “Viagens de Gulliver” surge quase como resposta à viagem de “Robinson Crusoe”, publicado na década anterior, é à veia satírica de Jonathan Swift que devemos a capacidade para ir além do mundo conhecido, para especular sobre realidades alternativas, umas mais fantásticas outras mais científicas, e assim congeminar novos mundos, novos personagens/pessoas e novos costumes, lançando a primeira pedra de um género que se mantém até hoje, o da Ficção Científica (FC). Swift precedeu em mais de um século, o chamado pai da FC, Jules Verme, e em dois, George Orwell, que nesta edição prefacia a obra.

A ilha de Laputa em “As Viagens de Gulliver”

Acredito que a inovação desta obra surja arrastada pela sátira, um género que tem necessidade de entrelaçar ficcional e real por forma a garantir os seus efeitos, conduzindo Swift a inovar muito provavelmente sem o desejar, antecipando assim todo o género literário de FC. Gulliver está longe de se apresentar como mero relato fantasioso, ou fantástico, não é de todo um conto de fadas, mágicos ou esotérico, a relação entre o plausível e o potencialmente possível é uma constante, é puro trabalho de especulação ficcional que temos aqui. Desde um mundo de pessoas pequenas (Lilliput) a um de gigantes (Brobdingnag), em que se confrontam as distinções físicas pelas suas propriedades anatómicas e perceptivas, passando por uma ilha voadora, na qual vivem pessoas abstraídas da realidade mundana, encerradas no estudo da matemática e música (Laputa), chegando a um dos raros momentos em que Swift parece resvalar, na visita à ilha de Glubbdubdrib, com Gulliver a ser introduzido num universo de magia e ocultismo, podendo conversar com espíritos célebres defuntos, acaba no entanto a invocar reis e rainhas para descobrir segredos da História, indo mesmo ao ponto de invocar e discutir ideias de algumas das figuras mais relevantes da ciência, de Descartes (1596 a 1650) a Sócrates (-470 a -399).
“Por vezes pousavam [moscas] em minha comida, e deixavam nela seus asquerosos excrementos ou ovas, que para mim eram perfeitamente visíveis, embora não para os nativos daquele país, cujos olhos grandes não eram tão aguçados quanto os meus quando se tratava de ver objetos pequenos.”
Como texto, Gulliver surge com a aparência de mera reunião de contos, a cada viagem, novas ilhas com novas pessoas que nos permitem aceder a novos modos de compreender a realidade, contudo a sucessão de viagens acaba por desenvolver um impacto final no nosso personagem, fruto do cumulativo de experiências, garantindo assim unidade à história, ao personagem, e no fundo a toda a obra. Swift parece um tanto obstinado na sua sede de crítica à sociedade e aos homens que a compõe, por via da sátira, hoje de difícil interpretação sem acesso a enquadramento histórico*, traçando desse modo um quadro de amadurecimento de ideias, no que toca à percepção daquilo que somos enquanto espécie.
“Perguntou-me ele quais eram as causas ou motivos usuais que levavam um país a ir à guerra contra o outro. Respondi que eram inumeráveis, porém mencionaria apenas umas poucas entre as mais importantes. Por vezes a ambição dos príncipes, que jamais julgam ter terra ou Gente suficiente para governar: por vezes a corrupção dos ministros, que induzem seu senhor a fazer guerra a fim de sufocar ou desviar o clamor dos súditos contra sua má governança. As diferenças de opiniões têm custado muitos milhões de vidas: por exemplo, se a carne é pão, ou o pão é carne; se osSuco de uma certa fruta é sangue ou vinho; se assobiar é um vício ou uma virtude; se é melhor beijar uma tábua ou jogá-la no fogo; qual a melhor cor para uma túnica, preto, branco, vermelho ou cinza; se ela devia ser longa ou curta, estreita ou larga, suja ou limpa, e muitas outras coisas. E não há guerras tão furiosas e sangrentas, nem tão duradouras, quanto as que são ocasionadas por diferenças de opinião, especialmente quando se trata de coisas sem importância.”

Assim, e apesar de apontado como livro de histórias para crianças, sendo-o mais pelo texto simples e muito acessível assim como pelo apelo à imaginação e fantasia das duas primeiras viagens, por sinal as mais conhecidas, é contudo uma obra com várias camadas de significado, que se vão abrindo a cada um em função do que se traz para leitura do mesmo.


* Esta edição da Penguin vem com muito boas notas do prof. Robert DeMaria Jr., a tradução de Paulo Henriques Britto, para a Companhia das Letras, está também muito boa.

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