agosto 27, 2016

“Fome” (1890), arte e ideologia

Há muito tempo que tencionava ler “Fome”, mas quanto mais fui lendo sobre o livro, mais fui sabendo sobre Knut Hamsun, e isso fez com que fosse protelando a leitura. Li-o agora, depois de ter deixado assentar os meus temores, e já pouco lembrado dos mesmos dei início à leitura que estacou ao fim de cerca de 20 páginas, por me ter recordado da razão porque tinha retardado a leitura, a xenofobia do autor.


Hamsun esteve banido das livrarias norueguesas (não de forma oficial) até há bem pouco tempo, e pelo mundo fora muitos académicos têm-se dedicado a dissecar o autor no sentido de compreender a ambivalência latente entre o legado escrito e o legado político (Zagar, 2009; Blamires, 2006; Krouk, 2011). Para muitos, é doloroso (Ferguson, 1987; Troell, 1996; Kolloen, 2003) suportar a ideia de que alguém tão brilhante no mundo das letras, um artista original e de vanguarda, possa ao mesmo tempo ter defendido um dos regimes, Nazi, que maior atrocidades cometeu contra à espécie humana. Mas a verdade é que os factos estão à vista, não é possível escamotear, não existem sequer atenuantes que possam justificar uma tal atitude, com a agravante do próprio Hamsun sempre ter recusado o arrependimento. Dos imensos factos que se podem inventariar, deixo apenas o obituário escrito por Hamsun para Hitler, após a sua morte:
"Hitler era um guerreiro, um guerreiro da humanidade e um pregador da doutrina da justiça para todas as nações. Ele era um reformador da mais elevada ordem, e o seu destino histórico surgiu por este ter trabalhado num tempo de brutalidade sem exemplo, que no final acabou por o fazer cair. Assim, podem os Europeus de Leste olhar para Adolf Hitler. E nós, os seus seguidores mais próximos, baixar as nossas cabeças à sua morte.” Hamsun, 1945
Podemos questionar-nos, como foi possível? Por outro lado, podemos questionar-nos antes, como não haveria de ser possível? No meio do varrimento levado a cabo pelo regime Nazi, alguma profissão terá ficado de fora? É óbvio que não, e no campo das artes outros artistas houve, criadores de obras disseminadoras de ideologia, alguns mais assumidos que Hamsun, como Fritz Hippler, outros menos, como Leni Riefenstahl.

Fome” não é uma obra xenófoba, mas o seu protagonista — maníaco-depressivo, elitista e intolerante — sempre à beira de esgotamento nervoso, provocado pela fome, por sua vez provocado pelo seu comportamento, acaba por registar momentos que rasam o xenófobo. Se me veio à mente o passado político do autor, foi porque lia o escárnio de um louco esfomeado contra um coxo que supostamente o perseguia, e logo a seguir contra um anão. Por outro lado, e continuando a leitura, percebe-se como este estima a autoridade, a polícia que tão bem realiza o seu trabalho, ou como este coloca os profissionais liberais — advogados, fotógrafos — acima dos meros empregados ou pobres. Um personagem não diz sempre aquilo que um autor pensa, ele é antes de tudo um objeto de ideias, mas ele também não é desprovido do sentir e pensar do autor, mais ainda, quando como no caso, o livro se baseia em memórias de fases da vida do próprio autor. E é exatamente isto que levanta os meus maiores problemas face à obra, esta ou qualquer outra deste autor.

Porque uma obra não existe sem um autor. Nos casos em que não existe, como as obras criadas por máquinas, a nossa relação com as mesmas praticamente desaparece, pela simples razão de que não existe um interlocutor. Ou seja, a relevância da arte pressupõe que um criador tem algo para dizer. Por outro lado a experiência de uma obra de arte, pressupõe que o criador sente e pensa próximo do seu leitor, por forma a ser capaz de avançar, mostrando o caminho, sobre os redutos que a ambos impedem de ver além. Deste modo, para mim, é impossível separar o artista do político, já que não existe artista sem político, um artista sem ideias é artista nenhum.

Por tudo isto, posso até admirar a sua arte, nomeadamente a beleza da sua prosa, a enorme capacidade para aprofundar o traço psicológico, ao qual Dostoiévski em nada fica atrás, e mesmo a sua tão louvada primeira-pessoa que já se tinha visto com idêntica beleza em Twain. Tenho também de admitir que terá sido imensamente influente na literatura do início do século XX, nomeadamente para autores como Kafka, Mann, Miller ou Hesse. Mas, nada disto me obriga a aceitar o seu legado. Cabe a nós selecionar, filtrar, e escolher aquilo que deve perdurar, e de entre tanta obra criada, e tanto ser humano íntegro, não podemos permitir que uma simples medalha dite um cânone.

Como nota final, outro autor, que recentemente li, e senti um travo inusitado, foi Céline, que por estranho que pareça tem também uma história problemática com o regime Nazi. Aquando da sua leitura e resenha, não dei conta desta sua ligação, julgo que a história no seu caso foi mais benevolente e foi apagando muito desse passado, algo que parece querer começar a acontecer na última década com Hamsun. Contudo, por mais que se branqueie, menorize, ou secundarize, em ambos estes autores sinto algo que me distancia deles, os tópicos dos seus textos estão pejados de uma intolerância que tenho dificuldade em aceitar como mero excentrismo artístico.

Sem comentários:

Enviar um comentário