março 22, 2016

“Os Irmãos Karamazov”, da dúvida

Não tenho muito para dizer de novo sobre uma das obras mais estudadas de sempre. Talvez não surja tantas vezes no topo de listas de livros como outras emblemáticas — Guerra e Paz, Ulisses ou Em Busca do Tempo Perdido — mas isso não faz com que represente menos, talvez se deva apenas ao facto de ser uma obra mais simbólica e menos realista ou artística, o que acaba também por a tornar mais apetecível em termos de estudos académicos. A escrita, a estrutura e a história são muito boas, mas não são excepcionais, o que aqui é excepcional é o modo como a ideia central é trabalhada, como se construiu todo um enredo, personagens e ambientes, aparentemente iguais a tantas outras obras, para no seu interior se depositar uma questão.


Porque sentimos necessidade de acreditar em Deus e ao mesmo tempo não conseguimos deixar de o refutar?

Os Irmãos Karamazov” apresenta-se como uma história de parricídio, na qual uma pessoa de poucos escrúpulos, ou nenhuns, tem quatro filhos, um de uma primeira mulher, dois de uma segunda mulher, e um terceiro bastardo e não reconhecido, desprezando-os e despojando-os de potenciais heranças, até que um dia um destes quatro acaba por o matar. O miolo da história acaba por se desenrolar em volta dos 4 irmãos, e da tentativa de perceber de entre eles qual terá sido o verdadeiro assassino, sendo nós levados a acreditar que qualquer um deles o pode ter feito, nem que seja apenas no plano moral.

Dmitri, o mais velho, é o mais humano, pleno de defeitos, sem grandes louvores, mas em oposição é alguém pleno de valores, defensor da dignidade e honra até às últimas consequências. Ivan é o racionalista, aquele que tudo questiona, e que garante que na ausência de Deus tudo é permitido. Por sua vez Aliocha é o contrário de Ivan, nada racional mas verdadeiramente crente na espécie humana e em Deus. Por fim Smerdiakov, o filho bastardo, integra elementos de todos os três, é fraco de saúde, muito humilde, mas também muito inteligente e por isso extremamente racional. Como se depreende destas quatro personagens centrais, o cerne da família Karamazov assenta na contradição de espírito, derivando daqui o adjetivo karamazoviano, pelo facto da complexificação que se germina em redor destes já que nada é linear, tudo tem um contrário. Dmitri é um doidivanas, só pensa em mulheres, mas é dono de uma honra férrea. Por outro lado Ivan e Aliocha, os dois irmãos da mesma mãe, são reverso um do outro. Por fim Smerdiakov, o mais complexo de todos, visto como mero servo, mas capaz de perscrutar o interior da alma de todos os seus irmãos, debatendo-se interiormente sobre o que fazer com o conhecimento que deles absorve.

Toda esta descrição acima só é possível graças ao labor psicológico de Dostoiévski que nos consegue levar junto de tais personagens e fazer-nos sentir como eles sentem, ao que se junta todo o labor filosófico para criar as condições para a pergunta central do texto. Mas sobre isso convido quem ainda não leu a parar aqui a leitura, já que irei abrir o jogo para poder debater o que está em questão no cerne da obra.

À superfície “Os Irmãos Karamazov” é aquilo que descrevi acima, embrulhado numa trama de eventos detectivescos carregados de descrições para aguçar o interesse, contudo no levantar do véu e procurando respostas para alguns quadros menos tradicionais vemos que existe algo mais, por debaixo da camada de quotidiano realista Dostoiévski surpreende-nos com o simbolismo da fé. A obra contém assim dois momentos principais, a parábola do Grande Inquisidor a meio do livro, e o julgamento de Dmitri no final, estes dois eventos apesar de totalmente separados, e contendo discursos sem qualquer ligação aparente, fazem parte da mesma discussão, elevando a força simbólica do texto, tornando a obra, como dizia acima, absolutamente brilhante e obrigatória em qualquer cânone.

A parábola do Grande Inquisidor é uma história contada por Ivan, que surge depois deste questionar: se Deus existe, porque permite a existência do mal? Assim Ivan dá conta de uma hipotética conversa ocorrida no século XVI, em Sevilha, entre o Grande Inquisidor e Jesus regressado à terra. Nesta o Inquisidor acusa Jesus de ter falhado ao não aceitar nenhuma das três tentações do Diabo no deserto (transformar pedra em pão; deixar-se cair do templo e ser salvo por Deus; e tornar-se o senhor da Terra) apenas para garantir a liberdade de arbítrio dos seres humanos, já que desta forma teria transformado a liberdade num peso. Ou seja, não é a evidência dos milagres aquilo que todos procuram para aplacar as dúvidas, porque Jesus não acedeu então? Ser livre de acreditar coloca sobre nós o ónus da evidência.

"Auto de Fe" (1683) de Francisco Ricci

Para o Inquisidor esta liberdade acabaria por nos aprisionar em vez de libertar, e é por isso que manda prender Jesus, dizendo-lhe, os humanos já não precisam de ti, a Igreja desenvolveu as ferramentas necessárias para acabar com o sofrimento, com a dúvida, mostrando e ordenando sobre aquilo em que se deve acreditar, não te queremos por cá a questionar novamente tudo.

Além da crítica à igreja, Dostoiévski toca aqui a essência do ser. Uma vez adquirida a capacidade cognitiva de conhecer e interpretar o real, e na completa incapacidade para chegar à resposta ao porquê da existência, sentimo-nos tocar o vazio que na ausência de objeto torna impossível teorizar, racionalizar e no fundo tomar qualquer decisão ou agir em liberdade. Ao Inquisidor, Jesus responde com um beijo, o amor infinito é a única reposta possível, e capaz de dar conta da dúvida.

Para dar conta desta mesma ideia Dostoiévski fecha o livro com o julgamento de Dmitri, o irmão julgado culpado pela morte do pai injustamente e enviado para a Sibéria para os trabalhos forçados. O júri na impossibilidade de chegar à verdade acontecida, opta por seguir a via do racional e não a do amor ao próximo, teses contrárias defendidas pelo procurador e advogado de defesa. Quando os indícios apontaram a Dmitri, estes foram incapazes de ver para lá das provas circunstanciais, tal como acontece com a pergunta “se Deus existe, porque permite a existência do mal?", fazendo com que ambas conduzam à descrença. Por isso é que apenas Aliocha acredita em Dmitri, já que este é o único que aprendeu a crer, aquele que não se deixa levar pela superficialidade do racional, decidindo em virtude daquilo que sente. Personagem este que é o eleito como principal ao longo do livro pelo narrador e fecha o mesmo numa tentativa de nos mostrar o caminho…

Não estou a dizer nada de novo, mas impressiona ver o alcance deste escritor, como a esta distância teve a clarividência para separar o racional do transcendente, assumindo a fulcralidade da razão mas não esquecendo que esta também pode deturpar a nossa visão. Nem tudo pode ser respondido pela racionalidade dos eventos, e quando assim é precisamos de ser capazes de aceitar outras visões, mesmo que na ausência de evidência (ex. milagres). Não se defende aqui a crença, assim como não se defende a não crença, o escritor navega completamente no limiar entre os dois lados.

Dostoiévski morria quatro meses depois de publicar “Os Irmãos Karamazov”, com 59 anos, dava aqui conta de todo o seu percurso de vida, de toda a intensidade vivida, do questionamento interno, do querer acreditar mas sempre duvidar, da inconstância das ideias e do contraste constante entre as mesmas, sendo tudo isso aquilo que plasmou de modo simbólico nesta monumental obra. Será que tudo se finda no último minuto?


Textos consultados
Depois de terminar o livro procurei saber mais sobre a obra e acabei por ler vários textos, muitos irrelevantes, outros que me ajudaram e colo aqui abaixo. Tendo em conta o carácter simbólico do texto encontrei várias interpretações, bem distintas, e segui as ideias que mais me falaram. Percebo as abordagens que procuram ver no texto a oposição comunismo/capitalismo, percebo as abordagens que se focam no modo como as histórias servem para iludir o real, percebo também aqueles que usam o texto para criticar a igreja, mas não foi por aí que optei por seguir. Senti antes, nomeadamente tendo em conta o historial de vida do escritor, que aquilo que estava aqui em questão era muito mais profundo que isso, era algo individual, que cada um de nós tem de confrontar na solidão do seu interior.

. The Reification of Evil and The Failure of Theodicy: The Devil in Dostoevsky’s The Brothers Karamazov
. The Relation between Dostoevsky and the Characters of The Brothers Karamazov
. The Brothers Karamazov: Theme Analysis
. Why Did Jesus Kiss the Grand Inquisitor?
. The Metaphysical meaning of the Legend
. Book of a lifetime: The Brothers Karamazovby
. The Brothers Karamazov
. The Grand Inquisitor

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