março 02, 2016

"Confissões"

Poderia chamar-se A Conversão, porque mais do que confessar os seus pecados, ainda que o faça, Agostinho traça a história da sua própria personagem, em jeito de autobiografia, dando conta do lugar comum de onde veio, igual ao de tantos outros, pejado dos mesmos dilemas, dos mesmos pecados, a partir do qual conseguiu, por meio de uma escolha profundamente refletida e munida de vontade, transformar-se, libertar-se, para chegar a Deus.

“Assim, meu Deus, a confissão que faço em tua presença, é e não é silenciosa; a boca se cala, mas meu coração clama. Tudo o que digo aos homens de verdadeiro já tinhas ouvido de mim, e nem ouves nada de mim que antes não me tivesses dito.”
Mas “Confissões” não é apenas mais uma autobiografia, nem tão pouco se tornou relevante por ser uma, ou mesmo a primeira autobiografia da nossa história escrita, o seu valor reside antes no impacto, no lastro produzido ao longo de séculos e séculos. “Confissões” é central na caracterização de toda a sociedade ocidental, embrenhada nos valores do cristianismo, e mesmo para quem deles se tenha afastado, tem de com eles conviver todos os dias, já que eles são a raiz e os pilares da nossa moral. São 16 séculos de permanência na cultura formativa de uma sociedade, num discurso direto de grande proximidade interior, completamente distinto daquilo que se encontra na Bíblia, que faz com que a mensagem passe, não apenas de modo fácil, mas de modo efetivo.

"Confissões" foi escrito entre 397 e 400

Agostinho, mestre da retórica, começa por se apresentar como apenas mais um ser humano, comum, vulgar, cheio de defeitos, tal como todos nós, e ao longo de 13 livros conduz-nos, pela mão, até à possível “salvação”. O seu discurso carregado de honestidade e humildade, intenso na análise psicológica que faz de si, da mente humana, torna-se próximo, empático, impossibilitando a nossa fuga. Agostinho mantém-nos atrelados a si, lendo-o, sentindo-o, mas sentindo-nos a nós mesmos. Não é de transcendência, nem de invisível, ou forças inimagináveis que se fala aqui, mas apenas de humanidade, de questionar o nosso eu, o que somos, porque somos, como somos, questões que todos nós, cedo ou tarde, nos colocamos. Fala do desejo, da perda, da busca, dissecando em profundidade o modo como se vai concebendo aquilo que somos, ou que parecemos ser.

Uma dos dilemas centrais desta confissão assenta no sexo, o “pecado original”, que para alguns soa exagerado, ou até obsessivo. Senti também isso no primeiro confronto, mas aos poucos fui compreendendo a sua centralidade na construção do caminho, tendo-se tornado mais claro quando li a análise de Mark Lilla ao livro de Robin Lane Fox “Augustine: Conversions to Confessions” (2015), um livro que disseca em profundidade as Confissões e todo o seu contexto. Lilla critica Lane, por se ter centrado ele próprio no sexo, chegando ao ponto de afirmar que a conversão de S. Agostinho “não foi uma conversão à fé cristã… mas antes uma fuga ao sexo e à ambição”. Lilla explica então:
não é desta forma que Agostinho conta a sua história. O problema do sexo é apenas uma concha à volta de um mistério mais profundo, o funcionamento da vontade humana. É um assunto ao qual Agostinho retornou uma e outra vez nos seus sermões e livros. A mente comanda o corpo, mas não pode comandar a si mesma. Por que não podemos desejar o nosso desejo? Ou, muitas vezes decidimos fazer alguma coisa, mas a vontade é mais fraca para seguir adiante. Como, se a vontade é uma coisa, é que isso pode ser possível? Para explicar estes enigmas, Agostinho teve uma ideia que moldaria a consciência ocidental durante séculos: a noção de que os seres humanos têm duas vontades em si, uma desafiante que quer autonomia e uma disciplinada que quer servir a Deus. A única maneira de alcançar a felicidade, Agostinho acreditava, era subordinar a primeira à segunda." (fonte)
Ou seja, a consciência boa e a consciência má, o certinho e o diabinho. Algo que se veio a converter mais tarde numa dualidade entre mente e corpo, pela mão de Descartes. A mente pura, a única capaz de chegar à verdade, e o corpo, resquício de nós, tal concha impeditiva de aceder à verdade, que por meio dos seus sentidos biológicos distorce o real. Algo que Platão já concebia, na sua oposição entre representação e real, e que perdura até aos nossos dias. Mesmo hoje, depois de amplamente demonstrado, o quão orgânicos somos, da ausência e impossibilidade de qualquer dualidade, o modelo abstracto dessa dualidade, satisfaz as nossas ânsias sobre os porquês das nossas dúvidas. Porque aquilo que somos não é uno, não é igual todos os dias, nem em todos os lugares, nem com todas as pessoas, e quando nos questionamos porquê, fica mais fácil ter um bode expiatório, de preferência algo que possamos dizer, com satisfação, que não podemos controlar, seja o desejo, a carne, ou a emoção.
“Vi tua Igreja cheia de fiéis que, por um caminho ou por outro, progrediam. Quanto a mim, aborrecia-me a vida que levava no mundo, e era para mim fardo pesadíssimo, agora que os apetites mundanos, como a esperança de honras e riquezas, já não me animavam para suportar tão pesada servidão. Essas paixões haviam perdido para mim o encanto, diante de tua doçura e da beleza de tua casa, que já amava. Mas sentia-me ainda fortemente amarrado à mulher. Sem dúvida o Apóstolo não me proibia de casar, embora em seu ardente desejo de ver todos os homens semelhantes a ele, exortasse a um estado mais elevado. Mas eu, ainda muito fraco, escolhia a condição mais fácil; por isso, vivia hesitando em tudo o mais, e me desgastava com preocupações enervantes, pois a vida conjugal, a que me julgava destinado e obrigado, ter-me-ia obrigado a novas incumbências, que eu não queria suportar.”
Sendo uma boa leitura, não deixa de apresentar problemas, muitos até, não apenas no seu conteúdo, tendo em conta a data em que foi escrito e o grau de assertividade, próprio à retórica, que Agostinho imprime ao discurso, mas também em parte pelo método, ou talvez ausência deste, na busca do interior. Não tínhamos ainda método científico, nem tão pouco aqui serviria muito, mas tinhamos Sócrates, e Agostinho conhecia o seu trabalho, por isso métodos de argumentação existiam, não é um problema de ter de se começar do zero. O maior problema de Agostinho surge na circularidade reducionista do seu discurso, que ao embrenhar-se na busca e definição de um conceito, se centra neste apenas, analisando todas as perspectivas que nele desembocam, esquecendo contudo tudo o que dele impacta o contexto circundante. O modo como tenta definir o tempo e a memória, nos últimos livros são totalmente demonstrativos deste processo de aprofundamento, em que objetivamente Agostinho se afasta, ou impede outros elementos de serem chamados à argumentação, mantendo a mesma fechada sobre si, em círculo, tornando impossível emergir qualquer ideia nova. Muito provavelmente porque imbuído do mesmo método que definiu na sua busca por Deus, no seu questionamento sobre a sua possibilidade, e na impossibilidade de chegar a qualquer evidência, foi construindo e desenhando um sistema de argumentação, que funciona na base da amplificação da abstração conceptual, ou seja, na construção de camada sobre camada de ideias, sem suporte, na ânsia de que elas acabem por se suportar umas às outras.
“Então veria que a sucessão dos tempos não é feita senão de uma sequência infindável de instantes, que não podem ser simultâneos; que, pelo contrário, na eternidade, nada é sucessivo, tudo é presente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente. Veria que todo o passado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto o passado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente. Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e o passado?”
Não conheço a obra de Agostinho, para além deste livro, mas li algures que este trabalho não terá sido tão espontâneo como se quer apresentar. Que este terá sido um trabalho escrito não para se encontrar a si próprio, mas antes para conduzir os seus leitores à conversão. Não tenho qualquer dado que suporte esta teoria, que pode não passar de mera conspiração, contudo tendo ou não sido assim, o mais relevante está no texto que temos na nossa frente que demonstra uma mestria profunda da retórica, do uso da narração, do storytelling, para envolver e persuadir. Todo o livro se apresenta como uma jornada — em três atos, com introdução, desenvolvimento e conclusão — em que se parte da ignorância da dúvida de si; para se entrar num novo reino, o do conflito existencial; para o qual se encontra no final uma resposta, a conversão, capaz de fechar todas as pontas, libertando-nos do peso da inconsciência, garantindo a total satisfação do leitor da narrativa.
“No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra era invisível e informe, e as trevas se estendiam sobre o abismo.” Ouço estas palavras, meu Deus, e não encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que se trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhece simultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas por inteiro, em plena luz, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, como disse, simultaneamente, sem a sequência temporal. Concluo também que se trata da terra invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto, ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo.”

Versão lida: “The Confessions of St. Augustine” (400) de Santo Agostinho, narrado por Simon Vance, 12 hrs and 45 mins, 2008 
Versão utilizada para os excertos: “Confissões” (400), tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Vozes, 9788532641861, 2013

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