setembro 03, 2013

"Livro" de José Luís Peixoto

Conheço o trabalho do José Luis Peixoto (JLP) desde o seu primeiro romance, “Morreste-me” (2000), que me deixou logo apanhado pelo autor. Foi numa fase em que me dedicava a ler autores mais novos, procurava mundos mais próximos, e não tanto os clássicos que nos falam sob uma forma grandiosa, mas sobre realidades tão distantes no tempo, que dificilmente nos identificamos, ficando muitas vezes apenas pela forma, sem razões para acreditar no conteúdo. Apesar de ter adorado, nunca mais li nada seu, com a vida académica a não-ficção tomou o lugar da ficção, que ficou apenas reservada ao cinema e videojogos. De vez em quando pego num romance.

"Livro" (2010)

Em Agosto passei pela loja, vi os vários livros do JLP enfileirados, fiquei admirado por já ter publicado tanta coisa desde então, mas fiquei contente, pelo respeito que me mereceu desde então. Dos vários, o "Livro" foi o que menos me impressionou quando lhe peguei. Estou um pouco cansado de histórias sobre a emigração, apesar de saber que ainda nos falta muito dizer, muito enfatizar, sobre uma enorme fase da vida de Portugal. Mas depois de lidas as várias sinopses em cada contra-capa acabei por aqui voltar, e é verdade que o título me impressionou. Primeiro pensei, que pretensiosismo, mas respeitando o JLP, quis acreditar que não era de todo o seu estilo, e por isso trouxe-o comigo para casa.

Duas constatações prévias, JLP nasceu no mesmo ano que eu, é um filho de Abril que nunca conheceu o antes. Mais, é filho de emigrantes portugueses partidos para o centro da Europa num tempo em que não era permitido sair do país, que tal como os meus pais voltaram para Portugal para nos dar uma infância nacional, depois da revolução. Do que ele sabe, e eu sei, sobre esses tempos, foi ouvido em discursos diretos em casa, ao longo das nossas adolescências. Vivemos uma ruralidade na infância, sempre comparada com o exterior, que nos impregnou os sentidos do que é viver Portugal. Mais tarde, as cidades nacionais receberam-nos para que pudéssemos continuar os estudos, impulsionados por uma geração de pais que quis o melhor do mundo para os seus filhos, que quis que estes chegassem onde eles não conseguiram, sabendo que o único caminho para dali sair estava nos estudos. Talvez por tudo isto perceba e sinta tão de perto o que está neste livro.

Apesar de sentir o tema do livro de perto, quero dizer que a maior parte da leitura, digamos 4/5 foi feita sem esta sensação, já que se relata o antes. JLP começa em 1948, e nós só nascemos em 1974. Por isso aquilo que o livro constrói como seu universo expressivo, tocará a todos, mesmo quem não tenha tido qualquer experiência de emigração perto. Já que o que torna o livro, uma experiência estética tão poderosa, não é o tema em si, mas o tratamento que lhe é dado por JLP. Não me admirei, nem fiquei surpreso com o seu à vontade descritivo, nem tão pouco com as suas capacidades de gerar metáforas tão "perfurantes", em termos de sentido, ao ponto de nos darem “a ver” através de meros conjuntos de palavras. Porque como disse, já o admirava como escritor, apesar de ter apenas lido um livro seu antes, e várias crónicas em revistas.
"A Adelaide carregava no interruptor e as lâmpadas fluorescentes, depois de piscarem em cambalhotas de luz, acendiam-se uma a uma e faziam crescer um zumbido branco, que permanecia." (p.142)

"A terra respirava. Quando a Adelaide saiu de trás do muro do chafariz, já uma vírgula iniciara o percurso em direcção ao seu útero" (p.202)
O livro vem dividido em duas partes. A primeira parte, o grande bolo do livro (ocupa 200 das 260 páginas) é realista, com um toque saramaguiano, enreda-nos, agarra-nos e não nos larga. Comecei pela manhã, e só parei no final do dia quando cheguei à última página. JLP descreve o rural português de uma tal forma que me fazia questionar, a todo o passo, sobre o nível de detalhe que consegue ali despejar, até parecia que ali tinha vivido, que ali tinha sentido. E na verdade só depois descobri que JLP tinha vivido numa aldeia portuguesa, como filho de emigrantes. Ainda assim, aquilo que descreve são as suas memórias transplantadas para um tempo antes de ter nascido.

Mas não é apenas o detalhe descritivo, o enredo construído sobre uma fragmentação do tempo, muito típica do pós-modernismo que atravessa o storytelling atual, é desenvolto e capaz de gerar momentos de puro "thrill", apesar de não se tratar de um "thriller". Logo a abrir o livro, temos um momento destes, um baque, que nos surpreende, nos intimida, e imediatamente nos agarra ao livro. Ao longo do texto, temos mais dois ou três momentos destes fortes, que servem para nos acordar do fio romanesco da história.

A segunda parte é um salto adentro da forma, um trabalho sobre os fundamentos da literatura. Se o tema é a emigração portuguesa, percebemos a breve trecho que este serviu apenas de motor para algo maior. O "Livro", poderia terminar no final das 200 páginas, e seria um muito bom livro, mas não seria o "Livro". O "Livro" abre-se a nós, e nós a ele, levando-nos para um novo nível de interação entre o texto, o autor e nós os leitores.

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