setembro 10, 2013

Google, o braço direito do governo americano?

Estive quase para desistir de “The New Digital Age” (2013) logo após a leitura da introdução. Dei uma segunda hipótese e li o primeiro capítulo, mas mesmo aí a minha vontade de deixar de ler não se desvaneceu. Um texto carregado de especulações banais, baseadas em banalidades da atualidade, um texto que pretende prever o futuro, e nos fala quase sempre do agora e do futuro imediato, cinco ou dez anos, completamente incapaz de ver além dos muros do real atual. Um livro que fala da vida humana, e dos seus condicionamentos, como trivialidades.

"Ruined online reputations might not lead to physical violence by the perpetrator, but a young woman facing such accusations could find herself branded with a digital scarlet letter that, thanks to the unfortunate but hard-to-prevent reality of data permanence, she’d never be able to escape. And that public shame could lead one of her family members to kill her."
Porque não parei então? A razão é simples, por causa dos autores. Não pelo conhecimento que detêm, que o livro dá bem conta, mas antes pelo poder que detêm. Logo ao abrir o livro, damos de caras com esse poder, quando vemos quem assina as mais elogiosas recomendações ao livro - Henry Kissinger, Bill Clinton, Tony Blair, Madeleine Albright, Michael Hayden, ex-diretor da CIA. Pouco depois de encomendar o livro, veio a público o projeto PRISM, revelado por Edward Snowden. A Google, e estes dois senhores estão no centro de todo este problema, por isso é importante perceber para onde nos querem levar, ainda que tenhamos de ler nas entrelinhas daquilo que escrevem.
"Identity will be the most valuable commodity for citizens in the future, and it will exist primarily online. Online experience will start with birth, or even earlier. Periods of people’s lives will be frozen in time, and easily surfaced for all to see. In response, companies will have to create new tools for control of information, such as lists that would enable people to manage who sees their data."
Ao longo de todo o livro, não existe a mais pequena referência ao PRISM, nem a qualquer outro projeto, ou programa, que possa apresentar qualquer similaridade com este. O livro começa com a banalidade das previsões futuras sobre as tecnologias da comunicação, e avança para algo que não podia ser pior, o terrorismo, os terroristas, os maus e os bons. Cheguei a questionar-me se estava a ler um livro escrito por dois responsáveis de uma das empresas de tecnologias de comunicação mais poderosas do planeta, ou se um livro do governo americano. Ou ainda, um livro escrito por estagiários que fazem o seu melhor, através da visão simplista, e tão formatada, que ainda detêm do mundo. A narrativa é tão decalcada, que parece quase existir apenas um mundo, e nada mais, tão simples, tão claro e tão esquematizável, que os autores parecem dizer, “como todos não conseguem ver o mundo como nós?”.
“By 2025, the majority of the world’s population will, in one generation, have gone from having virtually no access to unfiltered information to accessing all of the world’s information through a device that fits in the palm of the hand.”
"the printing press, the landline, the radio, the television, and the fax machine all represent technological revolutions, but all required intermediaries (..) [the digital  revolution] is the first that will make it possible for almost everybody to own, develop and disseminate real-time content without having to rely on intermediaries."
Aceder a “toda” a informação?!! Disseminar informação sem intermediários?!! Mas... é de ficar sem palavras com tanta barbaridade junta. Aceder a toda a informação, talvez se refiram ao PRISM, porque não vejo como se pode afirmar tão assertivamente coisas destas. Quanto aos intermediários, estes senhores esquecem que são eles próprios neste momento os intermediários, ou será que por proferirem o mantra “do no evil”, serão transparentes?!!
“the promise of exponential growth unleashes possibilities in graphics and virtual reality that will make the online experience as real as real life, or perhaps even better.”

“On the world stage, the most significant impact of the spread of communication technologies will be the way they help reallocate the concentration of power away from states and institutions and transfer it to individuals.”
Impressiona-me como foi possível escrever um livro desta forma, onde estavam os editores? Como se podem afirmar coisas sobre o futuro, ainda que imediato, como se de certezas se tratassem. Mas pior ainda, como se podem afirmar certezas num parágrafo, para na página, ou capítulo, seguintes, de imediato se contradizerem. Aonde pára a coerência discursiva? Ou isto são apenas umas ideias soltas atiradas para umas folhas em branco? É o que mais me parece. Ideias interessantes, que vamos discutindo com os amigos, mas que tratam assuntos complexos, com divergentes perspectivas, e que hoje podemos defender de um lado, e amanhã do outro. Mas se isso funciona no discurso oral, em construção contínua, não funciona num livro, ou não deveria funcionar. Um livro deveria traduzir um discurso reflectido, meditado, maturado, estruturado, e não uma monte de ideias engraçadas. Morozov explica muito bem como terá sido escrito o livro,
“In the simplicity of its composition, Schmidt and Cohen’s book has a strongly formulaic —perhaps I should say algorithmic— character. The algorithm, or thought process, goes like this. First, pick a non-controversial statement about something that matters in the real world —the kind of stuff that keeps members of the Council on Foreign Relations awake at their luncheons. Second, append to it the word “virtual” in order to make it look more daring and cutting edge. (If “virtual” gets tiresome, you can alternate it with “digital.”) Third, make a wild speculation—ideally something that is completely disconnected from what is already known today. Schmidt and Cohen’s allegedly unprecedented new reality, in other words, remains entirely parasitic on, and derivative of, the old reality.”
Mas fica tudo muito claro quando se percebe quem são verdadeiramente as pessoas por detrás deste livro, de onde vieram, como se encontraram, e o que é realmente pretendem com este livro.
“We two first met in the fall of 2009, under circumstances that made it easy to form a bond quickly. We were in Baghdad, engaging with Iraqis around the critical question of how technology can be used to help rebuild a society.”

“Eric confirmed his feeling that the technology industry had many more problems to solve, and customers to serve, than anyone realized. In the months following our trip, it became clear to us that there is a canyon dividing people who understand technology and people charged with addressing the world’s toughest geopolitical issues, and no one has built a bridge. Yet the potential for collaboration between the tech industry, the public sector and civil society is enormous.”
Cá está o que eles se propõem fazer com este livro, estabelecer a ligação entre os produtores de tecnologia e os clientes da política. Não é por acaso que um dos autores, Jared Cohen, o atual diretor da Google Ideas, foi o consultor de Condoleezza Rice para as questões das relações internacionais com o Médio Oriente, e é ainda consultor do Centro Nacional de Contraterrorismo dos EUA. Isso explica, porque razão a palavra “Iraque” aparece no livro mais de meia centena de vezes, assim como se podem encontrar abundantemente as palavras – “Paquistão”, “Afganistão”, “Irão”, “Israel”, “Somália”, “Terrorismo”, “Al-Qaeda”, “Assange”, “China”, “Coreia do Norte”. Mas, o que é a Google afinal!?

Um livro escrito pelo Chairman da Google, Eric Schmidt, e pelo diretor da Google Ideas, Jared Cohen, com o nome “The New Digital Age”, não deveria ser um livro sobre o futuro das tecnologias digitais? Não deveria ser um livro sobre o futuro da conectividade? Não deveria ser um livro sobre as inovações de fundo das tecnologias de comunicação? Ainda que pudesse, e devesse, falar dos seus impactos sociais e potenciais alterações antropológicas, e porque não até psicológicas nos campos emocional e cognitivo, porque é que haveria de se concentrar sobre o terrorismo, e apenas na sua leitura política (americana)?!

Porque dos sete capítulos, apenas os primeiros dois se dedicam aos impactos gerais na sociedade. São dedicados cinco capítulos completos à discussão do impacto das tecnologias da comunicação ao nível da política global, americana. Ou seja, mais de três quartos do livro são passados a discutir ideias soltas, sem rumo, sem estrutura organizativa, veiculadas apenas pela narrativa vigente da supremacia da política americana, alegadamente democrática, e de imposição de uma alegada democracia, pela força, ao resto do mundo!!! No final somos servidos com o antídoto que todos os problemas resolverá,
 "The best thing anyone can do to improve the quality of life around the world is to drive connectivity and technological opportunity. When given the access, the people will do the rest. They already know what they need and what they want to build."
Se ainda assim não estiverem convencidos do quão rasteiro este livro é, aconselho vivamente a leitura da extensa análise realizada por Morozov, que começa de modo irónico, brincando com a incongruência e infantilidade da escrita do livro, para depois atacar em maior profundidade os erros ao nível do uso da tecnologia em contextos de geopolítica. E se ainda tiverem paciência leiam a resposta de Assange aos autores.

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